quinta-feira, 27 de maio de 2010

A Rosa Mística (Conto)

"Escrevo estas linhas porque não quero partir sem deixar algum sinal, mesmo imperceptível, da minha passagem. Quem vai lê-las? Interroguei-me longamente e agora prefiro deixar em branco esse aspecto da questão. É possível que seja um funcionário da justiça, um burocrata, um homenzinho de veste cinzenta, de cara cinzenta e de alma cinzenta. Não me admirava que, por malas-artes, este meu primeiro e último escrito fosse desembocar na secretária atulhada de algum jornalista profissional. [...] O eco, o eco mesmo pálido e vago, mesmo mínimo que as minhas palavras possam provocar em alguém, é o meu único testamento. Deixo mais do que dinheiro, creio bem. Deixo a minha frustração e a minha esperança em algumas páginas sujas de tinta. Deixo uma vida inteira em sua essência. [...] E se, impiedoso e cego até final o destino soprar as folhas que escrevi aos quatro ventos? Creiam, é neste momento a minha maior angústia. Tudo teria sido em vão e acaso poder-se-ia concluir que Deus não existe, nem qualquer outro poder semelhante, nem sequer uma força criadora, majestosa e absurda? Julgo, porém, que as coisas não sucedem sem motivo e, embora há muito tenha deixado de reverenciar esse Deus feito e concebido à imagem e semelhança dos homens (quando dizem ser o contrário), encontro em mim neste instante decisivo um grande amor por quem me conferiu uma existência tão frágil e desnecessária, mas me permitiu, no entanto, este assomo último de homem, este preito à vida que, sei-o bem, vai ser interpretado exactamente ao invés. [...]"
António Quadros
Anjo Branco, Anjo Negro, (1973)
Parceria A.M. Pereira pp. 59-60

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