quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Fernando Pessoa

"Quais as razões psicológicas da inaptidão para o amor concreto e real – anímico e físico –, tão dolorosamente manifestada por Fernando Pessoa? Já vimos que o poeta foi um idealista e um grande romântico. E já observámos o seu lado-Álvaro de Campos, isto é, uma certa pulsão homossexual, transparente nalgumas das Odes do «engenheiro naval» e confessada em página íntima, onde diz: «sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina»; e «É uma inversão sexual frustre. Pára no espírito».Junto de Ophélia, o problema pode ter estado prestes a resolver-se, apesar das interferências (episódicas) de Álvaro de Campos, isto é, do seu demónio interior, talvez menos antimulher do que anticasamento."
António Quadros, Fernando Pessoa – vida, personalidade e génio, Publicações Dom Quixote, 1984, pág. 174

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Jornal de Letras 31.8,1988


O júri constituído por António Quadros, Arnaldo Saraiva, Carlos Reis, Cristina Ribeiro e Teresa Rita Lopes decidiu atribuir ao mais recente romance de Vergílio Ferreira o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores relativo a 1987. Foi uma história exemplar de Unanimidade ´"Até ao fim".

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Dos Arquétipos do Ideal Português às Instâncias da Realização de Si

Reflexão de Paulo Borges a partir de «O Espírito da Cultura Portuguesa» de António Quadros

Publicou António Quadros em 1967, em O Espírito da Cultura Portuguesa, um ensaio onde, procurando formular o que seria o “ideal português”, na linha das preocupações da Renascença Portuguesa, enuncia “um grupo de dez palavras ou cifras, cujo sentido ideal e simbólico se desdobrou na nossa cultura em vários planos significativos, desde o literal ao simbólico, do poético ao artístico e mesmo ao filosófico”. Diz serem “arquétipos” [...] cuja conjugação desenha porventura [...] o ideal português” e que seriam tónicas profundas do “nosso modo de filosofar” ou “palavras-mães” “que nos soam tão familiares [...] que nem reparamos na originalidade das meditações que nos sugerem”. Ilustra-o com sintéticos mas fecundos desenvolvimentos da premência na história, na cultura e no pensamento português, bem como das sugestões filosóficas e universais, das palavras nesta ordem apresentadas: Mar, Nau, Viagem, Descobrimento, Demanda, Oriente, Amor, Império, Saudade, Encoberto”.

I - Saudade
II - Oriente
III - Encoberto
IV - Demanda
V - Viagem
VI - Nau
VII - Mar
VIII - Descobrimento
IX - Amor
X - Império

Paulo Borges

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Pai, a noite (texto de Rita Ferro)

"Acordei com falta de paternage: uma saudade metafísica, um ódio pelo irreparável que não vos descrevo. Foi hoje, depois de acordar e antes de abrir os olhos, que passei revista às coisas que o meu pai me dizia e as confrontei com a minha vida. Sosseguei, porque ele passou pelo mesmo, mas partiu em paz. Quando, por razões pragmáticas, se é obrigado a viver sem transcendência, há ideias que parecem zombar da nossa condição. Mas só por fora. Enfim, tentarei reproduzir o diálogo que travámos, não sei se consigo; estes estados de semi-consciência são como os sonhos: parecem enormes, mas duram instantes. «Pai, eu não sou bonita...» «Filha, toda a beleza é aviso.» «Pai, eu não sei o que ando cá a fazer...» «Filha: percorre o teu caminho até ao fundo, e, com os versos que achaste, aumenta o Mundo!» «Pai, dois divórcios no papo e continuo sem saber o que é o amor...» «Filha: não sentirás tu a saudade do amor que não mereceste, de uma outra liberdade?» «Pai, eu tenho medo da morte...» «Filha: Sê um princípio, não um fim. Que depois de ti, as tempestades sejam outras e as lágrimas mais leves!» «Pai, eu não valho nada...» «Mexe-te: é preciso imitar Deus e criar outrem que não tu fora de ti.» «Pai, o tempo de Deus já lá vai...» «Enganas-te: o tempo de Deus é o tempo da atenção. O tempo de Deus é hoje.» «Pai, já tinha idade para não fazer asneiras...» «Não é verdade: a infância é eterna.» «Mas acha normal que eu tenha saudades do meu urso?» «Acho, mas cuidado: o infantilismo dos adultos é pior do que o seu demonismo.» «Não sei, queria tanto ter nascido num mundo melhor...» «Filha, confia em mim: esse mundo melhor é o mundo em que vivemos.» «Pai, por que é tudo tão difícil?» «Filha, simplificar não é assim tão fácil, no nosso tempo.» «Pai, a gente assiste a tanta batota...» «Não faz mal: o erro não é só educativo, é também cultural.» «E as mentiras que ouvimos, pai?» «Também fervo: o uso desonesto da palavra é um dos maiores flagelos da humanidade de hoje.» «E as guerras, pai, admitem-se?» «Filha, como homem cristão, a guerra é para mim um escândalo. Mas escândalo que me leva a tentar compreender...» «Pai, tenho remorsos: às vezes morrem-me pessoas queridas e esqueço-me delas no dia seguinte.» «Não tenhas: todo o amor que aparentemente morreu é todavia vivo» «O pai não está a perceber: eu já nem chorar consigo!» «É natural, querida: que humano hoje, pode e sabe não ser desumano?» «Pai, o pai também pecou?» «Claro, filha: fui puxado, atraído...» «Pai, às vezes sou má, outras vezes boa, e por muito que me esforce não consigo mudar.» «Sossega: se o homem é contradição e identidade, se o homem é vário e inconsciente, se o homem é bom e mau, se o homem é perene alteração, se o homem é repouso e evolução, abandono e vontade, acção e contemplação, egoísmo e ascetismo, se o homem simplesmente é, e se no seu ser cabe todo o universo, filha, assume-te simplesmente inteira, e nada excluas: a sensação ou a fé.» «Pai, ainda bem que partiu antes: nunca Portugal se deixou abandalhar a este ponto...» «Não te rales, canta comigo: ó meu Portugal que foste, que foste grande no mundo, abre as asas, abre as velas, revela o teu ser profundo!» «Pai: o pai acha que há salvação num mundo onde os filhos espancam os pais e as mulheres mandam os bebés de encontro às paredes?» «Filha: na hora destinal do fim, no limite do fracasso, no tempo cadente da derrota, eu canto, eu canto a esperança...» «Pai, os outros fazem-me sentir estúpida...» «Graças a Deus: Ele quis que, no fundo do abismo, os homens uns dos outros degraus fossem.» «Pai, lá fora ninguém nos liga...» «Tem calma: a nossa Arte contém todos os elementos necessários para se impor ao respeito e à admiração do Mundo.» «Pai, quem tem razão? A esquerda ou a direita?» «Querida: nenhum sistema ou nenhuma ideologia pode hoje considerar-se a salvo de suspeita, pode ver-se como solução absoluta, universal e salvadora.» «Sabe, pai? Eu já não acredito em nada...» «Filha, interrogar é já crer. A descrença humana não existe.» «Pai, serei ao menos mulher?» «Não sei, mas aprende: uma só mulher contém todas as mulheres e todas as mulheres não são ainda a mulher.» «Mas o pai sabe tanto...» «Enganas-te: só houve em mim perguntas sem respostas.» «Não minta, pai.» «Não minto: fui a perdida unidade que a inteligência sozinha não pressente.» «Mas, pai, eu não sei nada!» «E eu? Eu que tanto procurei luz e só encontrei noite?» «Noite?» «Sim: três vezes, noite, me debrucei sobre as ciências do sensível, três vezes me julguei vencedor, e três vezes reconheci que o resultado enganador era ainda, noite, a tua voz imperceptível; três vezes, noite, pedi à memória, à minha e à outra, à essência da história, a visão do amanhã, o dom da profecia, a luz no futuro projectada, prévia vidência da finalidade destinada; três vezes, noite, volvi o teu seio, três vezes filho da memória, três vezes agente da história, e apenas ao de leve logrei tocar na fugidia, fugaz razão, que atribuímos à acção, sem jamais todavia dominar, a absoluta verdade e liberdade do ser em perpétua criação.» «Pai, que estafadeira...» «Filha, que gozo!»"

Rita Ferro (filha de António Quadros) aqui e aqui

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Nova Águia Nº 2 - 2º Semestre 2008

ANTÓNIO VIEIRA
& o futuro da lusofonia

Inclui:
Texto de Adriano Moreira
O Território e o Mapa de João Teixeira da Motta (Com cartas de Agostinho da Silva, Cruzeiro Seixas, Dalila Pereira da Costa e António Quadros)
Inédito de Jean-Yves Leloup




http://www.zefiro.pt/
http://www.novaaguia.blogspot.com/
(Lista actualizada dos lançamentos da Nova Águia)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A Vida dos Livros

"António Quadros no seu utilíssimo “Uma Viagem à Rússia – Impressões e Reflexões” (Lisboa, 1969) afirma recordar «as multidões sorumbáticas e caladas com que me acotovelei (…) no metro de Moscovo, no Gum (grandes armazéns), na Exposição dos Progressos Soviéticos. Recordo os sonhos, as aspirações, as exaltações, as euforias e a animação dialéctica dos livros de Gogol, Dostoievsky, Tolstoi ou Tchekov. Total desfasagem. No entanto, o povo russo sabe recolher-se nostalgicamente na sua ‘ducha’ (a alma individual), faz sentir o seu espírito religioso nas tão belas melodias folclóricas que continua a cantar (…). Acorre às manifestações artísticas, ainda que estas sejam quase sempre muito convencionais – e é capaz de produzir na clandestinidade, obras de génio e liberdade, como ‘O Mestre e Margarida’, ‘Doutor Jivago’ ou ‘O Primeiro Círculo’». A desfasagem começa, no entanto, a desaparecer com a abertura de fronteiras. Premonitoriamente, à distância de quarenta anos, o ensaísta soube captar o essencial de uma sociedade que estava apta a renascer, pelas suas raízes. Sentimo-lo nos dias de hoje. O espírito da abertura de horizontes vai regressando.(...)" Guilherme d'Oliveira Martins
Para continuar a ler clique aqui

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Homenagem a António Quadros

António Quadros se estivesse vivo faria 85 anos. O desafio é este: enviem-nos um pequeno texto, um poema, um verso ou apenas uma frase em sua memória. O quinto é da autoria de: Klatuu Niktos (poema) e Ruela (ilustração).

ANTÓNIO QUADROS

O homem inteiro, rijo, de gestos elegantes,
Impecavelmente vestido, de voz franca,
Com uma presença de sabedoria e educação
Supremas, veio cumprimentar-nos, a nós,
Os petizes sem nome. A mão era forte,
Segura, fraterna. Um mestre, um sábio?
Mais que mestre e sábio: um cavaleiro
De Portugal, porque só os que demandam,
Os que conhecem o valor do sacrifício e
O caminho na noite trazem para os outros
Um coração fundo e palpitante nas mãos.

Depois cerraram-se cortinas, lajes, portas.
Não a memória, não o exemplo e o Graal.


Participaram neste desafio Mafalda Ferro, Maria Ana Ferro, Romana Valente Pinho , Cecília Melo e Castro, Klatuu Niktos e Ruela.

sábado, 26 de julho de 2008

Homenagem a António Quadros

António Quadros se estivesse vivo faria 85 anos. O desafio é este: enviem-nos um pequeno texto, um poema, um verso ou apenas uma frase em sua memória. O quarto é da autoria de: Cecília Melo e Castro.

"Foi na década de 80 que a convite de António Quadros, ingressei nesta Instituição – a que nos habituámos chamar de “Comunidade IADE” e que tão boas recordações mo trazem à lembrança, fazendo com que os seus princípios e o seu pensamento norteiem toda a minha postura nesta nossa “Casa”. Começo então por citar António Quadros, lendo um pequeno excerto do “Proémio” do seu livro “Memórias das Origens – Saudades do Futuro” para enquadrar o meu singelo depoimento sobre a importância que a sua visão do mundo, de Si mesmo e do Outro, representou e representa ainda, tanto para mim.

Assim, escreve:

“......A memória das origens é a recordação velada do princípio do ser, que é também o princípio do nosso ser. A pergunta sobre quem somos é inseparável da pergunta sobre de onde vimos.
Estas interrogações temos de nos fazer, como indivíduos-pessoas, como portugueses, como seres humanos, se desejamos ser mais do que entidades vegetativas, fruidoras da existência ou seus destroços, simples predadores ferozes ou tontas borboletas encadeadas pelas cintilações do próximo, do imediato, do que apenas interessa à superfície sensorial do nosso eu.
Quem somos? Que deve a nossa identidade aos nossos pais e avós? Como nos marcaram eles, na espiral genética e na herança moral e cultural? Até que ponto devemos ser-lhes fieis e a partir de onde podemos ou devemos resistir-lhes, afirmando a nossa liberdade?......” e mais à frente: “....Às perguntas sobre quem somos e de onde vimos acrescenta-se necessariamente uma terceira: para onde vamos.....” e ainda: “.......A saudade do futuro é uma paixão que animou toda a nossa história, como inspira toda a nossa cultura, fautora de acertos ou de erros, mas sempre omnipresente. O hoje é uma passagem evanescente entre um ontem que remonta às origens e um amanhã que é para nós mais, bem mais do que um mundo simplesmente melhor do que este, é um reino da primazia do espírito e dos seus valores, para o qual, consciente ou inconscientemente, trabalha tudo o que em cada um de nós é altruísta, dadivoso, generoso, visionário….”

Ora é então por aqui que eu pretendo construir este meu momento de reflexão, mais do que um simples depoimento, sobre o que me liga ao pensamento de António Quadros, atrevendo-me a citá-lo como acabei de o fazer, quando afinal falo sobre a minha produção artística que tão bem entendeu, acarinhou e incentivou.

Numa época em que se tornava muito difícil comunicar “Arte Electrónica”, então chamada de “Infopintura”, a um público consumidor em que as tintas, os pincéis e a tela, eram os instrumentos e suportes privilegiados da pintura clássica, António Quadros, tal como Stockausen afirma, “viu mais, ouviu mais e sentiu mais.” Apoiou desde a minha primeira exposição toda a minha criação artística, classificando-a de “inovadora e de um grande sentido estético”.

Afirmava que era pela esfera das emoções “como eu me propunha” que entendia a minha expressão plástica e poética, quando “olhava, sentindo” repetindo as minhas palavras, “os espaços imagéticos das minhas memórias” que, como eu afirmava, “teriam começado antes de existir, nas moradas seguras dos meus encantamentos.”

Num mundo cada vez mais global e massificante, verberativamente mais prosaico e em que os espaços comunicacionais se elevam como máquina destruidora da razão, fala-se muito hoje de afectos, de Inteligência Emocional, num paralelismo de resposta quase estigmatizante.

Sendo que a questão das emoções remonta mesmo a Aristóteles, passando por Cícero, Pascal, Nietzsche, Sartre, Platão e tantos outros cujas referências seriam aqui exaustivas, todos eles, de uma maneira ou de outra, me influenciaram nesta minha forma de ver e sentir o mundo e a minha relação com “o outro”. António Quadros com a sua enorme compreensão e teorização sobre a minha produção artística, só pode enriquecer a minha lista de “citados”. Concordava particularmente comigo, quando eu afirmava que se tratava de “uma nova forma de Comunicar, oferecendo um novo espectáculo do Olhar e uma nova maneira de Ver, porque de novas emoções se enchem os nossos Sentidos, quando se Ouve o poder imagético das nossas Memórias.

“Memórias das Origens – Saudades do Futuro”

David Hume (filósofo do século XVIII, no seu “Tratado da Natureza Humana” (1740), concebeu a comunicação ou “consumo” das obras de arte como regulado por dois princípios: a “Novidade” e a “Facilidade”. Só a novidade é capaz de estimular a criatividade e levar ao consumo ou desejo de posse. Mas só a facilidade permite que o consumidor frua, entenda e goze.
É pois necessário um equilíbrio entre a novidade e a facilidade, pois a novidade total é difícil de fruir e a facilidade é contrária à novidade.

Dir-se-á, pois, “a contrário sensu” que vivemos anos privilegiados para a prática de um novo conceito de Arte, aproveitando os meios tecnológicos ao nosso alcance, como meio de resistência à aculturação, a esse nada padronizado, que tende a suprimir o gesto e o risco da invenção do novo. É precisamente no sentido da apropriação dos meios operandis à escala ciberneto-global que penso ser hoje, o grande desafio à nossa própria capacidade de criação e fruição, propondo-nos um modo diferente de estar no mundo e na criação artística, usando os mesmos meios que outros usam para controlar as nossas vidas. (Um pequeno parêntesis para chamar a atenção para a nova guerra que começou esta noite).

Era este pensamento que partilhava com António Quadros e que o mesmo tanto estimulou, que me fez compreender que estava no caminho certo quanto às minhas opções estéticas, que ele próprio discutia com o Prof. Dr. Rui Mário Gonçalves, que à época me propôs ao prémio Unesco de Arte e Ciência.

Na sua afirmação:“......há no ser humano uma virtualidade de grandeza interior, uma capacidade de visão, de criação e de dádiva, que não podem ser ignoradas e de que dão testemunho os espíritos superiores que neste mundo viveram ou vivem e que também encontram expressão no próprio, inconfundível e levitante de cada paideia como projecção, que é, do devir civilizacional e civilizador de uma comunidade.....” não disse, mas atrevo-me a dizê-lo eu, esse ser humano de que fala, foi e é de facto, o próprio António Quadros.

Como ele mesmo escreveu, citando Teixeira de Pascoaes: “o futuro é o passado que amanhece”, eu acrescento:
“Amanhã, os cavalos serão aves com longas asas de marfim” mesmo que no reino da Utopia.
Para terminar, nada melhor do que um pequeno poema de Paulo Anes que de certo modo traduz a minha grande admiração por António Quadros e pela Instituição que fundou, o IADE!

Parto de Fé

Saio à procura
do que quer que seja
e o que quer que seja
onde quer que esteja
está sempre aqui.

Obrigada Dr. António Quadros por acreditar no meu trabalho académico e artístico! Farei o possível por não o desiludir!"
Participaram neste desafio Mafalda Ferro, Maria Ana Ferro, Romana Valente Pinho e Cecília Melo e Castro.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Homenagem a António Quadros

António Quadros se estivesse vivo faria 85 anos. O desafio é este: enviem-nos um pequeno texto, um poema, um verso ou apenas uma frase em sua memória. O terceiro é da autoria de: Romana Valente Pinho.

"Apontamento Biográfico
António Gabriel de Quadros Ferro nasceu na cidade de Lisboa no dia 14 de Julho de 1923. Se fosse vivo faria 85 anos. Filho dos escritores António Ferro (1895-1956) e Fernanda de Castro (1900-1994), António Quadros licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e dedicou-se, durante toda a sua vida, à filosofia, à literatura e à arte de uma forma geral. Por esse motivo, fundou, entre outras instituições, a Associação Portuguesa de Escritores e o Instituto de Arte, Decoração e Design (IADE). Na sua actividade profissional fundou e dirigiu alguns dos periódicos mais importantes do seu tempo, a saber, Acto, 57 e Espiral. Discípulo de Álvaro Ribeiro (1905-1981), foi um dos membros mais activos do grupo da Filosofia Portuguesa. Morreu no dia 21 de Março de 1993, com apenas 69 anos.
Apontamento Crítico
A filosofia da cultura portuguesa que António Quadros defende está associada ao projecto áureo e universal destinado aos portugueses, cujos pressupostos se baseiam na paideia dionisíaca, essencialmente no Culto do Espírito Santo. Esta apologia propõe uma visão ecuménica para o cristianismo e para o catolicismo. O autor crê que, num tempo futuro, todas as grandes religiões se fundirão entre si por meio da Nova Aliança e estabelecerão uma nova Era - a do Espírito Santo. Tal Idade promover-se-á em direcção a um movimento universal e ecuménico e realizará a Profecia que está revelada no Apocalipse de São João: o re-estabelecimento da Nova Jerusalém. Este Tempo ou Idade do Espírito Santo que o autor propõe é inspirado na hermenêutica joaquimita das Três Idades que Jaime Cortesão (1884-1960) e Agostinho da Silva (1906-1994) discutem nas suas obras. Deste modo, à semelhança destes dois autores, António Quadros apresenta uma leitura muito mais fiel àquela que foi veiculada pela tradição do franciscanismo espiritual do que à interpretação deixada pelo próprio Joaquim de Fiore. Tal reflexão conduzirá Quadros a um questionamento acerca da ideia de Deus e da ideia de Pátria.
O pensamento de António Quadros acerca de Deus poder-se-á enquadrar, de um ponto de vista estrito, no seio daquilo que se convencionou chamar movimento da filosofia portuguesa e, genericamente, no contexto da tradição cristã e agostiniana que, desde Paulo Orósio (385-420), vigora em Portugal. Tal reflexão desenvolve-se, portanto, no enquadramento de um conjunto de postulados que são caros aos pensadores da filosofia portuguesa. O que António Quadros parece defender é que, à semelhança do povo de Israel, Portugal é também um povo eleito por Deus. Embora todas as nações, em si, sejam, plurais, diversas e diferentes, parece que Portugal é mais plural, mais diversa e mais diferente do que todas as outras. E só o é porque Deus assim o quis, porque a ele confiou um projecto maior, a saber, purificar a razão humana por meio do Espírito Santo. Independentemente de os portugueses terem sido eleitos por Deus ou, como preferia Agostinho da Silva, se terem auto-eleito para a edificação de uma empresa universal, o que importa realçar é a característica dessa demanda. Quadros sintetiza-a, à maneira camoneana e pessoana, enquanto epopeia de Deus através do homem português, como aventura de Deus na terra.
Todos os aspectos que António Quadros trata na sua obra relativamente à ideia de Deus e à noção de Pátria estão intimamente relacionados com a crítica que, desde o século XVII, se faz a uma suposta estrutura psicológica e cultural do ser português e que ganhou mais evidência através do polemismo que António Sérgio (1883-1969) lhe empregou. Desta forma, a análise da polémica que António Sérgio erige em torno do sebastianismo torna-se fundamental por variados motivos. Em primeiro lugar porque o autor de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista concede demasiada importância aos polemismos sergianos, ou seja, tende a qualificá-los como redutores e ameaçadores da sobrevivência da lusitanidade; em segundo porque considera que o sebastianismo abarca a essência do ser português; e em terceiro porque o ideólogo dos Ensaios permite-nos questionar acerca daquilo que está para cá da dimensão mitológica e imaginária do movimento sebástico e que, ao contrário do que supõe António Quadros, não é algo unicamente historicista, sociológico, reducionista e menor. Uma leitura entrecruzada da polémica sergiana com o projecto áureo português proposto por Quadros conduzir-nos-á a uma reflexão mais apurada sobre a conceptualização de uma filosofia da cultura portuguesa.
Reconstituamos a polémica e analisemos, com isenção, os argumentos de cada lado. É a partir da sua colaboração n’ A Águia, logo após a implantação da República em Portugal, que António Sérgio se manifesta contra os princípios que orientam, em certa medida, a edição dessa revista por Teixeira de Pascoaes (1877-1952). A bem da verdade, António Sérgio não conseguiu distinguir o D. Sebastião histórico do movimento mítico-saudosista que se fundou a seguir ao seu desaparecimento no deserto marroquino e, nesse ponto específico, António Quadros tem razão. No entanto, este último relevou todos os aspectos negativos que conduziram a tomada do Norte de África, por parte do Rei Desejado, ao fracasso e à perda da independência portuguesa. Para o autor de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, à semelhança de Pascoaes, o abismo em que Portugal caiu (o Portugal real e histórico), constituiu-se enquanto catarse e permitiu que o país se elevasse para uma dimensão superior, espiritual, mítica que transcende qualquer queda histórica, objectiva e factual. Ao menosprezar esta vertente a favor de uma outra que enaltece apenas a poesia, o romantismo, a mitologia, Quadros também errou e, em certa medida, cometeu o mesmo pecado que Sérgio cometera: confundir dimensões que, a priori, não podem sequer tocar-se, quanto mais reunir-se. Uma coisa é filosofar a propósito daquilo que é misterioso, simbólico, enigmático, arquetipal, inefável, essencial, mitológico, outra é confundir ou misturar dimensões, como se cada uma pudesse influir categorialmente na outra. Tanto António Sérgio como António Quadros não conseguiram distinguir os erros do D. Sebastião histórico do romantismo do D. Sebastião mitológico, por exemplo. Ora, o âmago da polémica reside precisamente aqui. Sérgio, e outros como ele que defendem o racionalismo e o idealismo crítico, denunciam os malefícios que foram impregnados à educação dos portugueses por via de uma exaltação messiânica, profética, romântica e saudosista da historiografia lusitana e que, no seu entender, conduziram Portugal para a inércia, para o atraso social e cultural, para o conservadorismo, para a pequenez mental. Por sua vez, António Quadros, e todo o movimento da filosofia portuguesa, consideram que Portugal é detentor de um projecto áureo, universal e congregador para toda a humanidade e que, por esses motivos, não poderá ater-se somente àquilo que é temporal, contemporâneo, progressista, mas, acima de tudo, àquilo que extrapola este patamar e se ocupa do mito, dos símbolos, dos arquétipos e das formas."

(adaptação livre de PINHO, Romana Valente, Deus na tradição do pensamento português contemporâneo: a contribuição de António Quadros, In: A Questão de Deus: História e Crítica)

Participaram neste desafio Mafalda Ferro, Maria Ana Ferro e Romana Valente Pinho

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Homenagem a António Quadros

António Quadros se estivesse vivo faria 85 anos. O desafio é este: enviem-nos um pequeno texto, um poema, um verso ou apenas uma frase em sua memória. O segundo é da autoria de: Maria Ana Ferro (neta).

"Às vezes é preciso um esforço. Procuro não me prender às imagens de hoje que já não são iguais. Ele não era assim. Era como eu o via. Havia a cultura e as letras e os pensamentos, havia tanto que ainda está por descobrir. Havia uma mente para além do tempo e do espaço e à frente desse tempo e desse espaço. Ele era como eu o vejo. Para além dos feitos e dos ganhos e dos percursos e dos textos e das teses e do talento. Era tudo isso que era ser tão grande, mas era ainda maior quando sabia ser pequeno.

António Quadros, um grande pensador, um enorme homem, sabia tão bem ser pequeno, como nós.E travámos o carro por culpa da família de elefantes invísiveis, e recebemos de Natal uma casa de montar onde passámos meses a fio, e recebemos os miminhos vindos de outros países, os doces. E vimos dar na missa uma nota e ficámos impressionados, e rimo-nos com a água quente para regar o jardim e recebemos 50 centávos por cada duas favas que apanhássemos e jogámos futebol na praia, brincámos com os truques das mãos quando se finge ser capaz de cortar e voltar a colocar um dedo, perdemo-nos com os bonecos de movimentos perpétuos e as bonecas que vão da maior para a mais pequena e se encaixam umas nas outras e hoje sabemos que se chamam matrioshka's. E sentímos aquele cheiro todo a livros e questionámos a pulseira com as duas bolinhas que tinha no braço e achámo-lo por isso moderno e observámos o seu tique com os dedos de uma só mão que tocavam um no outro, o indicador e o polegar e o outro tique do pescoço e queríamos tanto comer dos seus aperitivos de queijo e questionámos o porquê de só comer marmelada, queijo e banana ao jantar e o porquê de guardar todos os seus remédios num cesto que era um galo... E a maneira de se sentar na cadeira na praia com as mãos em cima do joelho e um panamá azul claro e quando saltava a rede no court de ténis sem pestanejar e chateáva-se quando dúvidavamos que nos adorava e adormecia com um garfo na mão para acordar e ainda se lembrar do sonho e às vezes fingia ouvir-nos e estava a ser o outro homem que também era tão bom... Não é só disto que me lembro...Ele era um mágico. E é assim que ainda o vejo, como o homem que escreveu uma simples e incrível história para crianças. («O Pedro e o Mágico») A luz que há de ficar para sempre nas nossas vidas, mesmo que nunca nunca mais se veja um pirilampo. "

Participaram neste desafio Mafalda Ferro e Maria Ana Ferro.

Homenagem a António Quadros

António Quadros se estivesse vivo faria 85 anos. O desafio é este: enviem-nos um pequeno texto, um poema, um verso ou apenas uma frase em sua memória. O primeiro é da autoria de: Mafalda Ferro (filha).

"Como todas as meninas, adorava o meu pai. Era o melhor do mundo. Sabia contar histórias melhor que os outros pais. Brincava comigo como se, também, fosse pequenino. Perseguia-me de gatas pela casa fora, até a minha mãe ralhar com ele. Ria até as lágrimas lhe caírem pela cara abaixo. Olhava-me sempre com um sorriso cúmplice e amigo. Quando eu estava triste ou alguém era mau comigo ele dava-me um beijinho e dizia-me que gostava muito de mim e, nada mais tinha importância. Quando me levava à escola, já sabia que se iam zangar comigo pois ia chegar atrasada mas não me importava, pois com ele havia sempre uma aventura ou uma história. Às vezes dizia piadas sem graça nenhuma mas ria-me porque gostava dele. Tinha amigos muito chatos. Quando estava com eles, a ler, a escrever ou a comer aperitivos, não tinha paciência para mim e eu ficava triste. Tinha um mundo que era só dele e de alguns amigos. Nesse mundo ele era muito sério. A minha mãe zangava-se quando ele lá estava. No domingo, a seguir à missa da uma, no Loreto, o meu pai ia para a Brasileira tomar café e falar de coisas que eu não entendia. A minha mãe levava-nos para a Benard com as suas amigas chiques que tinham filhos bem vestidos e sorridentes. Mas, apesar dos rins de chocolate, eu queria ter ido com o meu pai. A seguir íamos todos almoçar ao “Noite e Dia”, porque a criada tinha folga aos domingos.
Adorava brinquedos de corda. Já eu era crescida e ainda ele descobria uns feirantes à beira da estrada que vendiam ursinhos aos saltos. Ficava tristíssimo porque queria comprá-los e não sabia para quem. No fundo, era ele quem lhes achava graça. Odiava livros de quadradinhos. Dizia que nos estragavam o português. Um dia queimou na lareira uns do Mandrake que uma amiga me tinha emprestado. Fartei-me de chorar e ele ficou aflitíssimo mas… a língua portuguesa era uma prioridade, lá em casa."

Jornal 57

Manifesto do 57 aqui.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

"A estranha aventura de Sintra"


"De Cíntia, como lhe chamavam os gregos e os túrdulos, deriva o nome de Sintra. Cíntia era então, para sábios e poetas, o promontório da lua. O promontório da lua! Fantástica, misteriosa designação... Que realidade escondida, que verdade ignorada entreviram, lucidamente, os nossos longínquos antepassados? Nada ficou escrito, e a tradição oral não conserva vestígios dos reines sonhados, dos caminhos pressentido-os. Os séculos foram passando e, pouco a pouco, os homens foram destruindo implacavelmente os velhos mitos. Não importa. Nós sentimos, nós sabemos que só eles tinham razão, que Sintra não é um lugar como outro qualquer, que Sintra caiu entre nós por qualquer morta aventura, que Sintra não nos pertence, e nós não a merecemos porque não cremos na sua estranha origem. Condições climatéricas, natureza do terreno, constituição geológico ? Mentira, horrível mentira! A força que alimenta os fetos, erguendo-os até ao céu, e dando-lhes natureza de Piore, a seiva que oferece às flores tão belos e variados matizes, as mil tonalidades do verde, a harmonia duma paisagem em que os rochedos e os penhascos se conjugam com as camélias e com os cisnes brancos, o sangue que palpita nas veias da serra de Sintra, vêm da lua, da nuvem, de toda a parte, menos deste mundo.
Os que amam Sintra, os adeptos da sua doce religião pagã, sabem-no bem. É um mundo diferente, onde a beleza é o ar que se respira, e a poesia é a própria respiração. Este ponto fresco do vale, em que o olhar sobe, trepando a vegetação da montanha, atravessando as paredes frias do Palácio da Pena e perdendo-se ao longe, para lá do dia e da noite; aquele panorama do Castelo dos Moiros em que, sentados nas ameias gastas da muralha, avistamos o mar confundido com o céu; aquele outro lugar onde o Paço Real de Sintra, pesado de história, se esconde por detrás dum muro inteiramente coberto de musgo velho ou o momento irreal em que a vista da serrania, com o céu, a floresta, e a rocha, o cheiro húmido da erva medrando em todo o lado, o fino som da água caindo da fonte e das aves cantando nas copas das árvores, se transformam numa única sensação, nova, selvagem e indiferenciada, nada disso pode fazer parte da nossa humanidade.
Estivemos em Sintra há pouco, por uma tarde calma, uma tarde de silêncio e de frescura. Visitámos as belas salas do Paço, onde viveram os reis de Portugal, percorremos as ruelas estreitas e íngremes, as escadarias tortuosas serra-acima, emolduradas de céu e de montanha, descemos ao vale onde os riachos frios alimentam canaviais ondulantes, e onde as mulheres lavam a roupa rindo e cantando, passeámos nos caminhos poéticos, profundos de sombra e verdura das pequenas quintas cercadas de muros altos, cobertos de trepadeiras, fomos a Monserrate, onde a colina é verde e a água é escura como um mistério, funda como a própria existência, admirámos a beleza cuidada do Parque de Pena, e estivemos também no palácio, donde a vista da terra não tem fim, e a vista do céu parece ter limites, passamos por todos os pontos consagrados de Sintra, os Capuchos, Seteais, a Fonte dos Passarinhos... O trabalho do homem, em Sintra, não briga com o trabalho da natureza, antes o auxilia e disso nos devemos orgulhar, nós,- portugueses. Que naquele ponto da terra, o homem tenha recuado, tenha hesitado, indica um respeito, uma admiração, que não fazem parte da sua índole. O homem apagasse, ocupa voluntariamente ali, a posição de segundo plano. Porquê? Que poder sobrenatural se desprende das faldas luxuriantes da serra? Sintra é a terra das interrogações, das surpresas. Porque é que naquele recanto nevoento, se juntam plantas e flores dos cinco continentes? Porque é que as nuvens vêm cobrir, a todo o instante, os seus píncaros que não ultrapassam, no entanto, os quinhentos e quarenta metros? As nuvens buscam o promontório da lua, saudade dum planeta ou duma estrela onde estiveram um dia. Ah, sim! Sintra nasceu de qualquer aventura esquecida pelos séculos, e veio até nós como cometa, bólide de outros espaços e outras dimensões. E como se compreendem à luz desta realidade, as sombras e as encostas verdes de Monserrate, os pequenos lagos tranquilos da Pena, os rochedos bravios da serra, as ramagens intermináveis das fervores, formando um tecto de penumbra, os arbustos desconhecidos na Europa, as quintas emolduradas na natureza, os campos de flores, como se compreende o mistério enevoado de Sintra? Abandonemos inteligência, lógica, raciocínio. Sintra é para sentir, e só sentindo, se pode conhecer. Abandonemos regras e ciências: é a única maneira de possuir a eterna poesia de Sintra.
Aqui deixamos a brisa da mensagem que uma tarde mansa e silenciosa de Sintra, nos ofereceu. Tinha acabado de chover havia pouco tempo.: As nuvens, opacas e cinzentas, afastavam-se pouco a pouco, levadas por uma breve aragem. Dum momento para o outro, o céu ficou descoberto e o azul invadiu a atmosfera, tal um sorriso súbito. Desprendia-se da terra um cheiro de ervas molhadas e de folhas a secarem. O sol chegou também, um sol fresco e alegre, e ficaram mais brancas as penas dos cisnes que, de novo, um a um, se lançavam à água. O Castelo e o Palácio, que antes se erguiam sombriamente, ficaram mais leves, mais claros, como se tivessem esquecido o passado e tornassem à vida. Do vale, as vozes e os ruídos do trabalho no campo ganharam sonoridades e ecos. O canto dum rouxinol cresceu no silêncio, atravessou matas e penedos, e foi-se perder, para lá dos contornos da montanha. Foi como uma revelação. A presença de qualquer coisa mais, a presença duma voz surda e irreal, a presença dum mundo diferente tornou-se-nos evidente e irrefutável. Mensagem invisível e impalpável, ela tocava-nos, todavia, e manifestava-se como sentimento nunca experimentado. Era a lembrança, a saudade da estranha aventura de Sintra, do promontório da lua Quem duvidar, quem zombar desta vida transcendente que a alimenta, então nunca poderá, realmente, entrar em Sintra."

António Quadros 
Panorama. - nº 36-37 (1948), p. 20-39
[o texto original é ilustrado por Bernardo Marques]

terça-feira, 15 de julho de 2008

«Diário Popular», 26 de Janeiro de 1974


"Meu Caro Afonso Cautela:
É com amizade, com simpatia e com apreço que, desde há anos, venho seguindo a sua actividade de intelectual e de escritor. Desde há quantos anos?! Lembro-me, como se fosse ontem, dos seus esforços por impulsionar e valorizar a vida cultural do Alentejo. Do seu combativo suplemento no jornal A Planície, de Moura. Da carta que um dia o grupo de jovens reunidos em sua volta enviou para o meu 57 -- jornal que se queria de pensamento activo e português. Da visita que certa tarde, perdido, lhe fiz na Aldeia de S. Luís, onde era professor e onde procurava uma espécie de ascetismo humilde no ensino de uma escola primária. Da sua passagem pelas Bibliotecas Itinerantes da Fundação, como encarregado.
Depois, a sua vinda para Lisboa, as suas actividades relacionadas com o cinema, as suas intervenções jornalísticas, as suas antologias, por exemplo: a antologia de Poesia Portuguesa do pós-Guerra ( 1945-1965) , organizada por si em colaboração com Serafim Ferreira para a Ulisseia. E, mais recentemente, a sua preocupação com o futuro da humanidade, o seu interesse por tudo quanto se relaciona com futurologia e prospectiva. A este respeito, até tivemos, há meses, um projecto comum, aliás gorado! Foi quando tive ocasião para conhecer a grande documentação que sobre o tema você possui.
Nada me admirou, por conseguinte, a orientação da colecção Dossier Zero, por si dirigido e organizado para a Arcádia e que acaba de publicar um livro antológico, arrepiante pela multiplicidade e extensão dos sinais que apresenta quanto ao porvir do planeta, e a que você deu o título pessimista de Os últimos Dias da Terra.
Nesta ordem de ideias, você organizou também para semanário de grande divulgação um inquérito acerca da situação do mundo e do homem daqui a 100 anos. Convidou-me a colaborar, eu disse-lhe que sim, mas o tempo passou e nada lhe dei, afinal o inquérito saiu sem a minha prometida colaboração e decerto não perdeu nada com isso!
Porque não respondi ao seu inquérito?
Porque, depois de muito moer e remoer a sua pergunta, cheguei à conclusão de que é totalmente impossível responder-lhe, pelo menos em termos racionais ou racionalistas!
Para onde vamos? Quem seremos?
Talvez que o astrólogo do seu bairro, meu caro Afonso Cautela, lhe dê uma resposta...
O Jean Viaud apresenta no número de Janeiro da revista Horoscope , a lista das predições feitas por ele nos últimos anos e que resultaram certas: desde a revolução na Hungria ao assassínio de Kennedy, desde o escândalo Watergate até ao novo conflito israelo-árabe e à crise do petróleo...
Seria tentador, por outro lado, fazer de profeta, como Jeremias ou Daniel, mas confesso que me sentiria bastante (?!) ridículo se o tentasse, a não ser que fosse um génio da prosa e do pensamento, como o padre António Vieira; a sua História de Futuro não rivaliza com os acertos fantásticos de Jean Viaud, mas é uma das mais magistrais peças especulativas e literárias que jamais se escreveram.
O engano do nosso grande Vieira não terá sido tanto o de afirmar e proclamar os nossos mitos, o do Quinto Império e o do Encoberto - até porque o mito é uma prodigiosa força capaz de impulsionar todo um povo para o futuro -, como o de os querer traduzir em termos muito concretos, muito históricos, muito positivos.
A mitogenia do Encoberto era demasiadamente grandiosa para caber na pele de D. João IV e o Quinto Império era sonho excessivo para o Portugal dos Braganças, mesmo senhor do Brasil, que mais tarde Guerra Junqueiro (um sebastianista desiludido e em processo de transferência do mito da sua expressão monárquica para a expressão republicana) cobriria de sarcasmos no poema A Pátria.
Os discípulos de Vieira, mais prudentes, aceitam também a profecia, mas não arriscam situá-la no espaço e no tempo.
Fernando Pessoa ainda aponta Sidónio Pais como o possível Encoberto ( Ode ao Presidente Rei Sidónio Pais) , mas na Mensagem já não se arrisca em apostas positivas. Agostinho da Silva faz depender o advento do Império (mais espiritual do que terrenal) de condições: sociais, morais, culturais...
Fora dos âmbitos da astrologia ou da revelação profética, meu caro Afonso Cautela, penso que nada é possível adiantar sobre o futuro. Fracassaram todas as tentativas de considerar a história como uma ciência, no sentido de lhe descobrir princípios inalteráveis e leis estáveis. O conhecimento do passado (sujeito a uma enorme margem de erro e às interpretações subjectivas ou ideológicas dos historiadores, aliás) pouco ou nada nos adianta acerca do conhecimento do futuro, porque a existência do homem em sociedade e os próprios homens na sua estrutura biopsicológica se encontram sob a influência de demasiados factores aleatórios, imprevisíveis, incontroláveis.
Já dizia Sampaio Bruno que «ninguém, à luz de toda a sociologia moderna, depois de ler todo Comte, todo Spencer, todo Gillings, todo este, todo aquele, pode escrever uma página, uma linha sequer desse volume inescrevível da história do futuro. Eu posso prever em astronomia , mas não posso prever em política. Sei a que horas, minutos e segundos há-de ser o eclipse do sol, mas não sei sequer se haverá eclipse do ministério..."
A futurologia e a prospectiva poderão predizer, por exemplo, índices de desenvolvimento ou de aumento de custo de vida, mas a curto prazo - e desde que as condições do presente não se alterem muito. Veja-se o que aconteceu com a crise do petróleo, que é um bom paradigma da impossibilidade de previsão histórica: os futurólogos que tinham calculado o desenvolvimento industrial europeu nos próximos anos ou que tinham marcado datas à unificação da Europa tiveram de baixar bandeira, porque tudo é agora completamente diferente. Até as ameaças, da poluição ou do esgotamento dos recursos energéticos, adquirem uma nova tonalidade. E que dizer das transformações sociais, políticas, morais, religiosas, económicas? Da balança de poderes? Da evolução da Rússia e da China? Da promoção ou estagnação dos povos africanos, agora que o mundo industrializado tem outras preocupações? Quem previu o fenómeno "hippy" e a fome de misticismo de muitos jovens divorciados da sociedade de consumo? Um sem-número de interrogações e de dúvidas!
Em última análise penso, muitas vezes, caro Afonso Cautela, que todos nós, há 5000 anos ou nos dias de hoje, no Tibete ou em Lisboa, tivemos e temos em frente de nós o mesmo inevitável apocalipse: o da nossa própria morte individual. E é a nossa única certeza histórica...
Quanto ao que será o mundo daqui a 100 anos nada poderei, pois, adiantar. Por certo que é fundamental tomarmos em linha de conta os avisos que você salutarmente vai reunindo no seu Dossier Zero. Tempos houve (nos fins do século XIX) em que a ideologia da ciência e do progresso acreditou num futuro risonho e cor-de-rosa; sabemos hoje que a ciência não tem em si o poder de conferir a felicidade aos homens e que, ao progresso das ciências, das técnicas e das indústrias não correspondeu idêntica evolução nos planos moral e espiritual, a pontos de nos vermos hoje numa situação de desorientação e de perplexidade gerais.
Mas, se não podemos ser muito optimistas, não tombemos, por outro lado, no absoluto pessimismo. Ao lado de motivos de desânimo, há também motivos de esperança.
O homem é e será sempre o homem; capaz do mal, mas também do bem; de matar e de salvar; de destruir e de construir. Há forças, poderes, factores aleatórios, correntes vitais e espirituais que nos ultrapassam e cuja direcção nos não é permitido perscrutar, a não ser por hipótese.
Perante o nebuloso futuro deverá importar-nos principalmente o exprimirmos e projectarmos os valores que poderão tornar melhores os dias do porvir: os valores da verdade e de amor, de liberdade e de justiça, de espiritualidade e de beleza, que teremos de assumir estóica e corajosamente nas nossas vidas particulares, antes de os expandirmos e divulgarmos, seja sob que orientação acharmos preferível.
E termino com mais uma esplêndida citação de Sampaio Bruno, esse pensador ainda tão mal conhecido dos próprios portugueses: " Tudo o que existe tem de passar, mas as gerações sucedem-se e é maravilhoso que, sendo tudo o mesmo, tudo é diverso."
Um abraço do seu amigo
António Quadros"

segunda-feira, 14 de julho de 2008

14 de Julho de 1923, nascia em Lisboa António Quadros.

"Só há em mim perguntas sem resposta:
Instinto para amar, para durar,
A grande porta abrir-se-á um dia,
E tudo será noite, ou vida, ou luz..."

domingo, 6 de julho de 2008

25 DE MARÇO DE 1993

Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues.Eduardo Ribeiro Pereira.Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.Fernando Alberto Pereira Marques.Fernando Manuel Lúcio Marques da Costa.Guilherme Valdemar Pereira d'Oliveira Martins.Gustavo Rodrigues Pimenta.Helena de Melo Torres Marques.Jaime José Matos da Gama.João António Gomes Proença.João Eduardo Coelho Ferraz de Abreu.João Rui Gaspar de Almeida.Joaquim Américo Fialho Anastácio.Joaquim Dias da Silva Pinto.Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.Jorge Lacão Costa.José Alberto Rebelo dos Reis Lamego.José Barbosa Mota.José Eduardo Reis.José Ernesto Figueira dos Reis.José Manuel Lello Ribeiro de Almeida.José Manuel Oliveira Gameiro dos Santos.José Manuel Santos de Magalhães.José Paulo Martins Casaca.José Rodrigues Pereira dos Penedos.José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.Júlio da Piedade Nunes Henriques.Júlio Francisco Miranda Calha.Laurentino José Monteiro Castro Dias.Leonor Coutinho Pereira dos Santos.Luís Filipe Marques Amado.Luís Manuel Capoulas Santos.Manuel Alegre de Melo Duarte.Manuel António dos Santos.Maria Julieta Ferreira Baptista Sampaio.Maria Teresa Dória Santa Clara Gomes.Raúl d'Assunção Pimenta Rêgo.Rogério da Conceição Serafim Martins.Rui António Ferreira da Cunha.Rui do Nascimento Rabaça Vieira.Vítor Manuel Caio Roque.
Partido Comunista Português (PCP):
António Filipe Gaião Rodrigues.António Manuel dos Santos Murteira.Apolónia Maria Alberto Pereira Teixeira.Jerónimo Carvalho de Sousa.João António Gonçalves do Amaral.José Fernando Araújo Calçada.José Manuel Maia Nunes de Almeida.Lino António Marques de Carvalho.Luís Carlos Martins Peixoto.Maria Odete dos Santos.Octávio Augusto Teixeira.
Centro Democrático Social (CDS):
Adriano José Alves Moreira.António Bernardo Aranha da Gama Lobo Xavier.José Luís Nogueira de Brito.Juvenal Alcides da Silva Costa.
Partido Ecologista Os Verdes (PEV):
André Valente Martins.15abel Maria de Almeida e Castro.
Partido da Solidariedade Nacional (PSN):
Manuel Sérgio Vieira e Cunha.
Deputados independentes:
Mário António Baptista Tomé.João Cerveira Corregedor da Fonseca.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Sr. Secretário vai dar conta dos diplomas que deram entrada na Mesa.
O Sr. Secretário (João Salgado): - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Deram entrada na Mesa, e foram admitidos, os seguintes diplomas: projecto de lei n.º 281/VI-Introduz alterações à Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro (Lei do Tribunal de Contas) (PS), que baixou às 1.ª e 6.ª Comissões, e projecto de deliberação n.º 61/VI - Atribuição à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da competência para apreciação das questões respeitantes ao Regimento e mandatos (apresentado pelo Presidente da Assembleia da República).
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Sr. Secretário vai proceder à leitura dos votos n.º 71/VI e 72/VI- De posar pela morte do escritor António Quadros (apresentados, respectivamente, pelo PS e pelo CDS, PSD, PS e PCP).
O Sr. Secretário (João Salgado): - Sr. Presidente e Srs. Deputados: O voto n.º 71/VI é do seguinte teor.

O escritor António Quadros, figura destacada da corrente de pensamento denominada filosofia portuguesa, consagrou a sua vida e a sua obra a estudar e a pensar Portugal, a sua razão, o seu mistério, o seu destino.Espírito aberto e tolerante, foi um homem generoso que privilegiou o debate de ideias e mereceu o respeito de diferentes quadrantes da vida cultural portuguesa.A sua morte é uma perda de vulto para a nossa literatura e para a nossa cultura.A Assembleia da República manifesta o seu pesar pela morte do escritor António Quadros e apresenta condolências à sua família.
O voto n.º 72/VI é do seguinte teor.
António Quadros, falecido no passado dia 21, fica como uma referência forte na corrente da filosofia portuguesa, aliando na sua vastíssima obra a dedicação à investigação, na área da cultura, com a assumida missão pedagógica e a adesão a um conceito transcendente de portugalidade.A Assembleia da República manifesta o seu respeito e admiração pelo ilustre desaparecido e apresenta pêsames à família enlutada.
O Sr. Presidente: - Para se pronunciarem sobre os votos de pesar, inscreveram-se os Srs. Deputados Manuel Alegre, Rui Carp, Adriano Moreira, Manuel Sérgio, Octávio Teixeira e André Martins.Tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Alegre.
O Sr. Manuel Alegre (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: António Quadros pensou, estudou, escreveu Portugal. Proeurou a sua razão, o seu mistério e o seu destino. «Para servir Portugal», dizia, «é preciso começar por pensar Portugal em simpatia com a grandeza, com o sofrimento e com a dinâmica criacionista, embora tantas vezes bloqueada, do seu povo».

segunda-feira, 16 de junho de 2008

“(…) o homem sem pátria, o homem sem história, o homem sem família, sem crenças, sem paisagem…. Triunfa a arquitectura para habitação de homens abstractos: as casas são todas iguais, as ruas são todas iguais, o arquitecto deixou de ser um artista para ser um politico (…) Triunfam a pintura e a escultura abstractas: assim como o artista abstracto ignora e despreza as formas dor corpos, ignora e despreza igualmente a forma das almas (…) Triunfa a literatura em que as personagens se poderiam substituir por outras indiferentemente (…) Triunfa a moda uniformizante. (…) Um cavalo ou outro cavalo? É o mesmo. O que importa é que o cavalo obedeça às rédeas e se integre na monotonia do seu viver quotidiano. Um homem ou outro homem? É o mesmo. O que importa é que o homem obedeça às leis e integre passivamente na máquina da produção e do consumo, de forma a não criar problemas. (…)”

António Quadros in, A Angústia do nosso Tempo e a Crise da Universidade (1956)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

pergunta

(a António Quadros)

_______________________(por Francisco Soares

"Na cela onde medito,
Erodindo-se a vida,
Recordo, e deixo escrito
O enigma da partida.
A própria situação
Em que me encontro agora
É de luz e prisão,
É de mágoa e de glória.
O respirar é brando
E revulsivo o olhar —
Ainda vislumbrando
Perigos sem lugar.
A terra que murmura
Abraçando os sinais
De uma noite escura,
Esfuma-se no cais...
Tudo se depura.
Sobe a voz ao vento
E trémula, insegura –
Na canção do tempo
O silêncio escoa –
A boca se esvazia
E — leve — a coroa
De espinhos caída.
O som de uma pluma,
Nem tanto, falava,
Arcaico, e nenhuma
Palavra se escutava.
Contemplo-me, calmo,
A respirar calado.
Ouço-me, sossegado:
Já não posso dar-me...
E, porém, a luz
Que diviso agora
Nem sequer reduz
A beleza da hora.
Vejo a longa sala
Com as almas dentro:
Ora ocas de gala,
Ora em pensamento...
E porém o peso
Que me fecha os olhos
Não o sinto ou penso:
Pára-nos, e foge-nos.
Cinzas do apagado
Fogo se atearam
E é só luz a chama
Do espírito no ar:
Já não anda cego
O navio, fica
Vazio; surpreso,
O enigma não
Se explica.
O lábio está preso
À porta fechada;
A cela onde rezo
Esfria, abandonada.
Mas quem é que fala
Commigo e, ao sê-lo,
Porque não me cala?
Porque vou sabê-lo?
...
Depois era o céu
Límpido do sul
Delido no seu

Infinito azul."

segunda-feira, 2 de junho de 2008


Romana Valente Pinho, no 1º número da revista «Nova Águia» sobre António Quadros (p. 90-93)

António Quadros: Pátria Real e Pátria Imaginária

"Na esteira de Luís de Camões, António Vieira, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Raúl Leal, Fernando Pessoa, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, António Quadros (1923-1993) defende que a nação portuguesa na sua essência (...) é dotada de um echaton, de uma razão teológica, que consiste num diálogo ou numa dialética entre o humano e o divino: «Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica.» (...) E nem poderia ser de outra forma, porque os povos não são iguais, diferem pelo seu composto étnico, pela língua que falam, pela estrutura cultural em que se enquadram, pela sua religião ou religiões dominantes, pelas vicissitudes da sua história particular, pelo seus sistema de ideias, mitos e tendências afectivas, pelo seu ritmo evolutivo segundo um modelo próprio embora implícito, aliás adequado à substância específica da sua realidade humana e social, enfim pela revelação que a todos os níveis lhes é concedido em sua experiência de ser. (...)"

quarta-feira, 21 de maio de 2008

“(…) a irresponsabilidade surge (…) em três instâncias. Quando o artista ou o poeta fixam o homem num presente estático e fixo; quando o amarram ao passado; quando o utopizam no futuro; por outras palavras, quando se imobiliza o tempo para melhor corresponder às exigências clarificantes da razão pura. (…)"

António Quadros, «A Existência Literária»

(...) Fazer arte é pois um acto de tremenda responsabilidade existencial. (...)

António Quadros

domingo, 18 de maio de 2008

Do medo da profundidade


"(...) Traumatismo profundo, que afecta fundamentalmente o próprio ser humano. No mundo robotizado dos «gadgets», o homem é menos homem. Tudo se complica em sua volta e dentro dele. Os ideais que persegue são aleatórios e ilusórios, deixando atrás de si um travo de amargura e de desespero. Não há tempo nem espaço, para a crença, para o amor, para o espírito, para a arte. É o cultivo do superficial e o medo cada vez maior da profundidade.(...)"

António Quadros
Franco-Atirador

segunda-feira, 12 de maio de 2008

“A literatura afastou-se pouco a pouco, não só das teses, mas ainda das ideias e dos ideais (..) literatura superficial, pura expressividade de criadores ou produtores suspeitos de arriscar no mais além do que o seu olho, o seu ouvido, a sua perspectiva subjectiva, instantânea e ante-metafísica, (…) arte que não põe problemas e não faz pensar.”

António Quadros, «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade»

sexta-feira, 9 de maio de 2008

"(...) Tento em vão abrir os olhos. Há como que uma fina volúpia neste estonteamento, nesta nebulosidade. Batem à porta. Quem está aí? Sinto uma mão que, subtil, pousa no meu ombro. Escuto uma voz com uma inflexão recôndita e meiga. Conheço-a. Um frémito, uma aragem, uma vaga claridade. Alguém me disse um dia: vem, João. Outrem me solicita, agora: vem. É uma voz interior ou exterior? Há uma sombra morna e doce, há um perfumoso afago de cabelos inefáveis. Há uma frescura de asas. Há uma vaporosa, ondulosa coluna que me leva consigo, condescendente nos flutuantes movimentos do meu corpo. Vou. "

António Quadros, Uma Frescura de Asas

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O vento vem aí

"Debruça-se, calado, sobre um livro.
O gesto é lento, os olhos sérios, quietos.
Antes como depois, morte e silêncio.
Que ficou desse instante satisfeito,

Cheio de um pensamento definido,
De um sonho a realizar-se, de um ideal?
O vento levou tudo, varreu tudo.
Murmurou por momentos um adeus,

- ou seria o lamento das folhagens?,
E logo foi varrer outros destinos...
Não é triste, poeta? Esta lágrima

É o movimento, o instante: tem-no a ele,
E a um cortejo de sombras, infinito.
Adeus, amigo, o vento vem aí..."

António Quadros, Viagem Desconhecida

sexta-feira, 28 de março de 2008

"Meu Eu, meu Deus: vencida a auto-divinização egolátrica, quebrada a casca do ensimesmamento pequenamente lírico e empecido, o eu pode tornar-se espelho de transcendência, caminho de diálogo com algo que o excede «ser mediador» para uma outra e a mesma realidade: a do Deus que nos fala e em nós fala no nosso próprio ideal, no nosso próprio movimento, ainda que o investamos de outros nomes, ou a do Deus que por vezes ao longo da jornada, mais cedo ou mais tarde, dificilmente, penosamente, agraciadamente, aprendemos a reconhecer sob mil máscaras que permitem a nossa liberdade..."

António Quadros, in «Ficção e Espírito»

sexta-feira, 14 de março de 2008

Ode ao Anjo de Portugal

Altas, altas asas, recolhidas,
um dúbio sorriso, uma expressão
de alegria serena, talvez de ironia,
talvez ainda de êxtase ou paixão,
não sei,
a própria face do enigma, como a esfinge,
não sei, que o tempo,
corruptor do símbolo e da pedra
altera ou finge
a palavra dita e silenciada.

Diogo-Pires-o-Moço te esculpiu,
o povo te esqueceu,
fecharam-te em Coimbra num museu,
porque esse que teu ser mediu
não do português uma clara existência quis fixar,
mas a perturbante essência libertar.

Escândalo o teu olhar de paz,
escândalo ontem e hoje a tua beleza intemporal,
escândalo o não pareceres Portugal
na aparência angélica que nos dás.
Olhamos-te, nós, os impacientes
olhamos-te, os saudosos, os furiosos,
porque tarda a hora de o sonho se cumprir,
porque em nossa volta, descontentes,
só vemos sonhos frustrados,
seres dilacerados,
o campo de Alcácer Quibir
ainda e sempre,
orgulho e corrupção,
coragem e miséria,
as guitarras, a traição,
a pátria dividida,
a pressa, a inteligência transviada,
El-Rei Dom Sebastião,
o seu fracasso, a sua ilusão,
a morrer ainda, devagar,
por esse país fora,
nas cidades, nas aldeias, nas montanhas,
a morrer de luxo e de pobreza,
de vaidade, de tristeza,
de curtas ambições,
de poder desregrado,
de habitual monotonia,
a morrer em almas indigentes,
em espíritos carecentes
de alegria criadora,
de entusiasmo, de amor,
Dom Sebastião a morrer dentro de mim
dentro de mim que somos todos,
nas nossas cruéis batalhas interiores
entre a visão radiante do futuro
e a realidade pesada e envolvente
do presente.

Mas altas, altas asas recolhidas,
a própria face do enigma, como a esfinge,
assim Diogo Pires te viu
e para o amanhã que é hoje te esculpiu…
Apostou na esperança, contra dúvida!
Apostou na confiança de que em breve
as grandes asas vão abrir-se porventura
e de que o corpo da pátria, leve, leve,
é ser das alturas que perdura,
apostou que o povo da aventura,
filho do mar,
pai da descoberta,
apostou que a nau fracta do ocidente
no tempo encontraria
a sonhada harmonia
dos seus poetas,
dos seus profetas,
e com clara certeza realizaria,
cedo ou tarde,
depois de quedas e infernos,
depois de abjecções e cobardias,
depois de se ter cindido
e consumido
na inveja, no ódio, na baixeza,
na sujeição, na descrença, na incerteza,
no culto dos eventos positivos,
na negação da própria alma futurante,
cedo ou tarde criaria
o quinto império do amor,
o quinto império do espírito universal,
senhor
da fraternidade enfim,
da justiça e liberdade
fundadas na verdade
que a razão inquieta demanda,
como nau de descoberta rumando ao horizonte
na aliança do leme e do mistério.
Ninguém morre na saudade e na memória,
o tempo que flui não é um grande cemitério
onde jaz sepultada toda a história.
A beleza do Anjo de Coimbra
é o que resta
da gesta.
A sua paz, o seu sorriso,
é o ser português, inteiro e puro
voltado para o futuro.

Ó Portugal,
teu ser no mundo é divisão,
teu ser em Deus é união,
mas o enigma do teu mito em acto
descobre-se no anjo que é o teu retrato.


António Quadros

sábado, 8 de março de 2008

Fernanda de Castro, sobre António Quadros no periodo da sua juventude:

Calado, tranquilo, sem fazer ondas, seguia serenamente o seu caminho, sem sobressaltos, mas de maneira eficiente e segura. (in Ao Fim da Memória)

sexta-feira, 7 de março de 2008

"As caravelas já não partem deslumbradas a desvelar o Cabo. Não. O tempo é outro. Mas os pescadores portugueses continuam na praia a fixar com olhos estáticos o mar infindável e a viver e a lutar e a sofrer e a morrer o destino do mar.
E na imaginação das crianças e dos adolescentes, no inconsciente dos adultos frustrados numa fixação à terra que lhes parece injusta e odiosa, a ideia da aventura, da viagem, do descobrimento palpita como uma promessa e como uma fascinação."

António Quadros

terça-feira, 4 de março de 2008

“O patriotismo emocional é um fogo de palha, que ora se inflama à notícia de um efeito desportivo, ora se afunda por completo ao aceitar sem um assomo de resistência as leis, os actos de governação, as propostas politicas, culturais ou estéticas mais radicalmente avessas aos interesses nacionais, à vontade de regeneração segunda a identidade portuguesa ou às traves mestras da nossa estrutura cultural.” António Quadros (in, Portugal Razão e Mistério)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

António Quadros sobre o Caranguejo de Ruben A.

"O leitor não deixará de ficar impressionado perante certas páginas em que a sátira é mais violenta, em que tamanha lucidez no delirio das palavras e das ideias. E, deixemos aqui a seguinte legenda: estamos em presença de um romance que, mais do que qualquer obra que tenhamos lido nos últimos anos, corrobora dolorosamente a necessidade urgente de uma profunda reforma educativa."

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Sobre António Quadros, texto de Pedro Calafate

Foi um dos principais impulsionadores da geração do "57", impulsionado pelo magistério de Álvaro Ribeiro, e por isso fortemente empenhado na formulação de uma «filosofia portuguesa».É pois relevante a leitura do manifesto do grupo reunido em torno da revista 57, de que António Quadros foi director. Aí se indicam as chamadas «enfermidades» da cultura nacional, analisadas na base de um muito claro comprometimento com uma «filosofia da pátria». Como causas da referida doença nacional elegem a influência exagerada de correntes estrangeiras, com os seus vários «ismos», fossem elas o escolasticismo, o positivismo, o racionalismo ou o marxismo, embora com uma significativa excepção aberta para o caso do existencialismo.Esta excepção é relevante porque para António Quadros e de um modo geral para o «grupo da filosofia portuguesa», aqueles vários «ismos» impunham um universalismo sujeito à ideia de «mesmidade», esvaziando o heterogéneo em favor do homogéneo. Nesta base, a atenção dada por António Quadros ao existencialismo, para o qual fora sensibilizado pelo seu mestre Delfim Santos, na Faculdade de Letras de Lisboa, tinha menos a ver com o seu acolhimento e difusão em bloco, pois que recusa a ideia sartreana de uma moral sem Deus, do que com o que no existencialismo se abria como possibilidade de atenção ao concreto, ao homem concreto e singular, «esse desconhecido», levando-o a defender, em Introdução a uma Estética Existencial, que o conceito de existência se deveria assumir como primitiva categoria do ser.Daí que tanto o existencialismo como a «filosofia portuguesa» lhe parecessem meios privilegiados para conduzir ao florescimento da nossa raça. Como pano de fundo, vislumbra-se a questão das filosofias nacionais e o valor da filosofia portuguesa, portadora dos valores futuros, muito na linha de Álvaro Ribeiro, que em vez da relação hegeliana entre o ser e o não ser, preferia a relação mais aristotélica entre a potência e o acto, sendo a potência a categoria do possível, donde emergia a tentação do profetismo e do messianismo. Não que para António Quadros a verdade possuísse fronteiras, mas sim que a filosofia, por ser via e caminho, as teria certamente, não tanto físicas, mas sobretudo espirituais.António Quadros prosseguiu nesta linha de pensamento durante mais de três décadas, ligado ao que já alguns chamaram uma «patriosofia», desenvolvida em duas vertentes complementares: uma vertente estética, ligada à fenomenologia da arte portuguesa, com especial atenção ao que considerava ser a sua dimensão simbólica, como via de conhecimento indirecto do que de mais profundo e enigmático existe no homem, em linha prosseguida por Lima de Freitas e por Afonso Botelho (Introdução a uma Estética Existencial, 1954); e uma vertente orientada para a filosofia da história portuguesa, de feição escatológica, explorando as virtualidades do mito e da saudade como sua expressão sentimental (Introdução à Filosofia da História, 1982; Portugal Razão e Mistério, 1987; Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 1982)Em ambos os casos, o que confere unidade à sua obra é o propósito de determinar uma razão de ser para Portugal, fundindo «memória de origens e saudade do futuro», um futuro que generosamente acreditava estar reservado ao advento do Espírito Santo, assumindo-se aí Portugal na sua teleológica razão de ser, agente principal de um projecto aureo de realização espiritual da humanidade (Portugal, Razão e Mistério).A abertura a estes domínios do simbólico em estética e do mitológico em história, participava também da recusa de um racionalismo estrito, defendendo antes uma razão que se não pode desligar da consideração dos diversos graus da experiência do ser, mesmo aqueles que se afiguravam anteriores à lógica e ao conceito, atendendo por isso ao lugar do mistério e do enigma.

Pessoa e o Orpheu


"É-nos difícil, hoje, termos uma noção exacta do que o Orpheu representou. Talvez que o mais fiel documento desse período seja o artigo de evocação que o fino e inteligente humorista que foi Augusto Cunha, amigo de Mário de Sá-Carneiro e cunhado de António Ferro, escreveu para a revista Atlântico, em introdução à sua página «Um serão paulista» (contemporânea aliás ao lançamento do paulismo). Vale a pena transcrever ao menos um excerto.
As mais audaciosas e estranhas produções, umas propositadamente excessivas na forma e no conceito, outras premeditadamente exageradas no seu destrambelhamento, preconcebidamente irritantes e ofensivas da rotina e dos cânones literários então correntes, nasceram desse movimento irreverente e iconoclástico que perturbou a tranquilidade até aí gozada na pacifica pacatez do nosso meio lite­rário, irritou os críticos e provocou a indignação do grande pú­blico, habituado ao lirismo ingénuo e calmo e ao romantismo dos folhetins.
Com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, constituíam os mais assíduos elementos do grupo: Luís de Montalvor, Pedro de Mene­ses, Almada Negreiros, José Pacheco e António Ferro, que foi o editor do «Orpheu», apesar dos seus 19 anos - idade em que legalmente o não podia ser.
Por vezes, no «Martinho», apareciam também Santa Rita Pintor, chegado havia pouco de Paris e de quem se contavam as mais estranhas blagues, as mais sensacionais boutades, os mais espirituosos ditos.
Já a sua figura, no meio apagado e morno do café, fazia sensação. O seu ar fúnebre emergindo do fato preto, a sua figura esguia e angulosa, o colarinho muito largo e direito, meio coberto por um laço também preto, o chapéu negro enterrado na cabeça rapada à navalha, o próprio galgo hierático, que o acompanhava e ficava em atitude submissa junto da mesa onde ele se concentrava a encher largas tiras de papel, davam-lhe um aspecto estranho, quase irreal, naquele ambiente banalíssimo e burguesmente pacato do café.
A ideia de uma revista literária de novos moldes e novos ritmos, no propósito de «formar, em grupo ou ideias, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte», partira de Luís Montalvor e de Ronald de Carvalho que no Brasil tinham projectado criar uma publicação - «Orpheu» - destinada a provocar uma renovação do gosto e a reunir novos desejos e características de arte e de beleza.
O primeiro número da revista, em cuja introdução Montalvor explicava os propósitos e intenções de «Orpheu», foi, para o grande público, a ruidosa e sensacional revelação da nova escola literária.
O poema «Os Pauis», de Fernando Pessoa, dera ao movimento o nome de guerra: - o Paulismo.
Nas longas conversas de café, nas digressões nocturnas pelas ruas da Baixa, discutindo em voz alta por forma a despertar as atenções e a curiosidade intrigada da multidão, os componentes do grupo tinham criado uma série de novas formas e de audaciosas expressões, procurando todos, numa estranha competição, exceder-se a si próprios e a cada um, em exotismos, em extravagantes conceitos e opiniões, nas mais imprevistas e complexas frases deliberadamente destoantes da vulgaridade corrente e, quase todas, com o principal propósito de irritar."

António Quadros
Fernando Pessoa, Vida, Personalidade e Génio, pp. 78-79.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

De imagem em imagem
navegador do visível e do invisível,
o homem perde ou acha a miragem...