terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Teatro simbólico dos contos maravilhosos

Ilustração de Contes de ma Mère l'Oye
de Charles Perrault por Gustave Doré.
"Pretendeu-se que o conto maravilhoso constituía uma falsificação da realidade, pura e simplesmente porque narrava mentiras. Mesmo se entendido simbolicamente, tal género de literatura podia ser perigoso, pois daria talvez acesso a um sem-número de alienações na idade adulta: escapismo, perda de sentido do concreto, imaginação doentia, distanciação da realidade... As crianças, contudo, resistiram. (...) O deslumbramento perante o desconhecido, a atracção pelo enigmático e pelo misterioso, a decisão do trabalho e da investigação desinteressada, a capacidade de fugir às tiranias do mundo burocrático e imediato, a virtualidade sempre aberta da intuição, do sonho, do ideal, a conservação de um olhar inocente perante a espessura das coisas ou perante a presença dos males, das angústias e das dificuldades, a sublimação dos impulsos instintivos em obra criadora e fecunda, a disponibilidade diante do inesperado e do insólito são apenas algumas, de entre muitas dádivas que as crianças recebem na infância, dos contos maravilhosos. (...) À laboração misteriosa do inconsciente se devem muitas vezes, tanto como à própria razão consciente, os inventos da ciência ou os conceitos da filosofia. (...) Talvez que, aos jovens das gerações de hoje (...) tenham faltado os avós, as mães e as tias que sabiam contar histórias de fadas, pela calada da noite, a crianças palpitantes e deslumbradas. Talvez essa oportunidade perdida os tenha desequilibrado para sempre. Se não ressuscitamos o teatro simbólico dos contos maravilhosos, talvez o mundo pereça entre escombros, ou simplesmente se detenha, desgostado com a pobreza espiritual da humanidade nova..."

António Quadros
"Estruturas Narrativas do Maravilhoso"¨*
em Memórias das Origens Saudades do Futuro (1992) pp. 91-110
*De uma conferência proferida em 1973,  no anfiteatro da Biblioteca Nacional,
com o título  'O sentido Educativo do Maravilhoso', nome não dado pelo autor.

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