"(...) Creio entender a razão pela qual a atualidade da poesia é mais questionada do que a de outros gêneros artísticos tradicionais. É que, de maneira geral, as outras artes podem ser apreciadas não apenas de modo refletido e profundo, mas também são capazes de nos entreter de modo ligeiro e superficial. Podemos apreciar uma peça musical mesmo enquanto estamos, por exemplo, trabalhando. E podemos apreciar uma obra plástica como uma pintura ou uma escultura, por exemplo, “en passant”. A poesia escrita, por outro lado, quase sempre exige de nós, para que a apreciemos, que a leiamos de modo refletido e profundo.
A mais evidente razão para isso é que a linguagem do poema não funciona do modo convencional e cotidiano. Normalmente, usamos a linguagem como um instrumento para a comunicação e o pensamento prático, utilitário, instrumental. Pois bem, a linguagem do poema nem se limita a ser mero instrumento ou meio, nem está a serviço do pensamento instrumental. No poema, fundem-se meio e fim, assim como outras categorias que, no uso convencional da linguagem, tendem a se manter separadas, tais como essência e aparência, forma e conteúdo, significante e significado etc. Por isso, não podemos ler um poema ao modo impensado, ligeiro, superficial, automático, irrefletido em que lemos a maior parte das coisas. A leitura do poema toma tempo, e dá trabalho.
Ora, algo que, além de tomar tempo e dar trabalho, não oferece qualquer perspectiva de trazer alguma recompensa palpável — e, de preferência, pecuniária — é simplesmente incompatível com a hoje predominante apreensão instrumental do ser. Para esta, ela não faz senão atrapalhar a vida.
É exatamente por ser capaz de impedir a redução da vida a essa sua dimensão instrumental que a poesia é importante no mundo contemporâneo. É ao subverter ou perverter a linguagem instrumental e sua correspondente apreensão instrumental do ser que a poesia convida o leitor a se permitir livremente enredar e fascinar pelos sentidos dos versos, palavras, paronomásias, metáforas, metonímias, alusões, sugestões, melodias, ritmos, silêncios, espaços etc. dos poemas. E é ao deixar, nesse empenho, interagirem e brincarem em seu pensamento razão, emoção, intelecto, sensibilidade, intuição, memória, senso de humor etc., que o leitor enriquece a vida com um outro modo de apreensão do ser: o poético."
A mais evidente razão para isso é que a linguagem do poema não funciona do modo convencional e cotidiano. Normalmente, usamos a linguagem como um instrumento para a comunicação e o pensamento prático, utilitário, instrumental. Pois bem, a linguagem do poema nem se limita a ser mero instrumento ou meio, nem está a serviço do pensamento instrumental. No poema, fundem-se meio e fim, assim como outras categorias que, no uso convencional da linguagem, tendem a se manter separadas, tais como essência e aparência, forma e conteúdo, significante e significado etc. Por isso, não podemos ler um poema ao modo impensado, ligeiro, superficial, automático, irrefletido em que lemos a maior parte das coisas. A leitura do poema toma tempo, e dá trabalho.
Ora, algo que, além de tomar tempo e dar trabalho, não oferece qualquer perspectiva de trazer alguma recompensa palpável — e, de preferência, pecuniária — é simplesmente incompatível com a hoje predominante apreensão instrumental do ser. Para esta, ela não faz senão atrapalhar a vida.
É exatamente por ser capaz de impedir a redução da vida a essa sua dimensão instrumental que a poesia é importante no mundo contemporâneo. É ao subverter ou perverter a linguagem instrumental e sua correspondente apreensão instrumental do ser que a poesia convida o leitor a se permitir livremente enredar e fascinar pelos sentidos dos versos, palavras, paronomásias, metáforas, metonímias, alusões, sugestões, melodias, ritmos, silêncios, espaços etc. dos poemas. E é ao deixar, nesse empenho, interagirem e brincarem em seu pensamento razão, emoção, intelecto, sensibilidade, intuição, memória, senso de humor etc., que o leitor enriquece a vida com um outro modo de apreensão do ser: o poético."
Antônio Cícero
Jornal O Globo | Novembro de 2014
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