"[...] Perguntamo-nos hoje, ao acompanhar os desenvolvimentos ainda mais recentes da psicologia, que significado real terá tido a simulação ou o fingimento de Pessoa, no sentido corrente destes termos, e como ele próprio os definiu, falando para estranhos ou para um público vago. Perguntamo-nos se os heterónimos não correspondem simplesmente a cisões reais e inescapáveis de uma individualidade que quase diríamos infinitamente complexa, mas tomando ela consciência plena do fenómeno e procurando assumi-la e, em último termo, sublimá-la. Entre a individualidade e a personalidade interpõe-se a máscara ou persona, que é a projecção de uma síntese de traços caracterológicos, inclinações anímicas e complexos afectivos. Usada desde muito cedo, senão abusada pelo voluntarismo do orgulho (eu sou quem sou, eu sou coerente comigo próprio, não há em mim contradições), a persona confirma e acentua o que se chama a unidade personalística. Os heterónimos seriam pois, se porventura analisados por Janet, Morton Prince ou Jung, «parcelas de personalidade», coexistentes e independentes, caracterologicamente diferenciadas e até com memória própria que, confrontando-se no teatro do inconsciente, mas reconhecidas pela consciência vigilante do poeta, viveriam o que este definiu como «um drama em gente».
António Quadros
Fernando Pessoa, Vida, Personalidade e Génio,
Publicações Dom Quixote, (2000), 5ª edição, pp. 278-279
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