segunda-feira, 27 de setembro de 2010

António Quadros, "Uma alma delicada" (Jornal Público, 21-03-2003)

Por Rita Ferro

Fica aquele olhar azul, torturado e amável. Vivia sem paz, mas dava-a: era acima de tudo uma alma delicada. Tinha tiques. Um deles, o de levantar o queixo e o pescoço bem alto sempre que qualquer coisa o preocupava: uma conferência por escrever, um funcionário doente, a reprovação de um neto. Tal como a minha avó, escreveu até cegar. E até depois disso, como ela. É a imagem que dele retenho, mais forte.
Sentado, nos últimos dias, com os papéis espalhados em cima da mesa, lançando àquele romance inacabado um último olhar de angústia: "A Paixão de Fernando P." Guardo essas páginas de prosa quase diáfana, onde a escrita, tão alinhada, parte do centro do papel para a direita - cegara de um olho.
Deixou-se internar pela última vez agarrado a livros.
"Leva a Bíblia, pai?" "Sim", respondeu já vago, "de certa forma". Era o "Húmus", do Raul Brandão, e o "Verbo Escuro", do Pascoaes.
Amigos da casa.

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