terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Burocracia, vacuidade e historicismo

"Difícil se torna exprimir hoje, passados já dez, doze anos, o que para mim representou, como iniciação cultural, a descoberta dos movimentos convergentes da fenomenologia e do existencialismo. Saía por essa altura da Faculdade de Letras de Lisboa, então instalada no velho e poeirento edifício da Academia de Ciências, e lia com avidez as obras de Sartre. Na Faculdade nada me propiciara em tal direcção, a não ser a ausência de qualquer direcção. Posso dizer que, se alguma mola propulsora encontrei no então Curso de Ciências Histórico-Filosóficas, foi a absoluta consciência do vazio espiritual que a inconsciência desse vazio nos mestres amargamente me sugeriu. No plano moral, é certo que a humilhação das lições dogmáticas, dos exames mnemónicos e da total incapacidade para encontrar, tocar, abrir as virtualidades originais de cada aluno me deu grandes reservas de força anímica para começar enfim a minha preparação intelectual, uma vez obtido, depois de vários vexames, o almejado diploma de curso superior - um documento burocrático com fins burocráticos e nada mais. Fui sem dúvida dos mais obscuros alunos da faculdade e, após incidentes como a pública manifestação de desconfiança por parte do presidente de júri de licenciatura, ilustre professor catedrático, quanto a ter sido eu realmente o autor da tese apresentada, muito admirado fiquei quando recebi a notícia da minha absolvição, isto é, da minha aprovação, embora com modesta nota. Por que me dera o ensino filosófico da nossa Universidade tão abismal sensação de vacuidade, de inutilidade? (...) O que repelira desde o início, não só o meu espírito como até a minha sensibilidade, fora a ausência de qualquer dinamismo no ensino universitário com o qual fui obrigado a pactuar, ausência que hoje atribuo ao excesso de historicismo de que padece não só a educação como a cultura portuguesa. (...) No fim do curso, na famigerada disciplina semestral de História da Filosofia em Portugal - já então não compreendia muito bem por que, se se ensinava Literatura Portuguesa, se não podia ensinar Filosofia Portuguesa -, como o professore propusesse aos alunos a elaboração de monografias históricas sobre pensadores nacionais, um colega redigiu um estudo sobre o antipositivista Domingos Tarroso, autor, já no século passado, de um tratado intitulado «Filosofia da Existência». Ousara ele considerar Tarroso um percursor do existencialismo e bem assim valorizar esta corrente filosófica. Encontrei este colega há meses e lembrámos com amargura os momentos de humilhação por que ele passou ante a total incompreensão e as invectivas irónicas do professor! Também a aridez historicista desta cadeira, em que praticamente se vedava aos portugueses o direito de pensarem por si mesmos, me levou mais tarde a averiguar, mormente depois de ter encontrado Álvaro Ribeiro, que ao tema se devotara, a possível autonomia e originalidade de um pensamento português, de uma filosofia portuguesa. 
É sem dúvida curioso como, desde os primeiros anos universitários, no meu espírito se uniram a tese existencialista e a tese da filosofia portuguesa - um ramo, aliás, da tese das filosofias nacionais. Ambas eram objecto de uma feroz oposição catedrática. (...) Escolha, se havia, era extra-universitária. " 

António Quadros
"A Cultura Portuguesa perante o Existencialismo"
em Sartre e o Existencialismo de Ismael Quiles
(Arcádia, 1959)
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Ismael Quiles Sanchez Pedralba, (1906 - 1993) foi um teólogo e filósofo espanhol fortemente influenciado por Martin Heidegger, Gabriel Marcel e Karl Jaspers. Escreveu, entre outras obras, La persona humana (1942), Aristóteles: vida, escritos, doctrina (1944), Filosofía del cristianismo (1944), Heidegger y el existencialismo de la angustia (1948), Sartre y el existencialismo del absurdo (1952), Más allá del existencialismo: filosofía in-sistencial (1958), Metafísica budista (1967), Filosofía y mística: yoga (1967), Filosofía y religión (1985).

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