O Homem Unidimensional, Herbert Marcuse trad. de Miguel Serras Pereira Letra Livre, 2012 |
"Na opinião de Marcuse - e trata-se de um ponto de vista notável, que convém meditar e medir em todas as suas implicações - «a grande arte entendeu-se sempre bem com a realidade horrorosa», conservando, apesar das injustiças ou males ambientes, «um conteúdo transcendente». Com os avanços do industrialismo, da tecnologia e do socialismo, na medida em que a «realidade horrorosa» se vai desfazendo e em que o «conteúdo transcendente» desaparece (hipóteses discutíveis, é claro), a arte e a literatura só apresentam duas saídas possíveis, uma vez que fique ultrapassada a problemática social urgente e que a «fuga» para o transcendente já não se propicie (sublinho que não aceito a tese marxista de que a visão do transcendente é alienação e desejo inconsciente de fuga das realidades...). Dessas duas saídas a primeira é, na «sociedade repressiva» ou na «sociedade de consumo», a porta condenada de uma orla decorativa, «forma de rebelião contra a arte ilusionista da europa». No entanto, se «na consciência dos artistas de vanguarda, a arte se converte numa orla decorativa mais ou menos bonita, confortável, num mundo de terror (...) tal função de luxo da arte deve ser destroçada», em nome da segunda saída, isto é, a função de protesto, que Marcuse considera predominante. (...)
No pensamento de Marcuse, deve findar o reinado do livro e da biblioteca, do quadro e do museu, devem findar a arte plástica, como a arte literária. (...) O ideal de Marcuse, ideal de longínquas ressonâncias míticas e utópicas, é a «sociedade como obra de arte.» (...) Chegado a este ponto, completa-se porventura o círculo, de forma que terá escapado à consciência do próprio Marcuse. É que, se o seu erro inicial (...) foi o de conceber uma sociedade unicamente horizontal, um jogo de forças humanas em tensão dialéctica, em choque, em apetência de repressividade ou de libertação, esquecendo (...) a profundidade e a altura do espírito, que mais tarde ou mais cedo, mesmo no seio do turbilhão social ou da pressão da massa, se nos reencontra como questão pessoal a sós consigo própria, obrigando-nos a responder como indivíduos e logo como pessoas aos desafios metafísicos do ser e do nada, da vida e da morte. (...) Marcuse repõe, talvez sem dar por isso, muito embora em termos aparentemente só humanistas, o velho ideal religioso e agustiniano da «cidade de Deus», reergue das cinzas uma nova sacralização, recusa um Deus que fosse manifestável iconograficamente (Marcuse é decididamente um iconoclasta), mas para o ressuscitar como ordem estética."
No pensamento de Marcuse, deve findar o reinado do livro e da biblioteca, do quadro e do museu, devem findar a arte plástica, como a arte literária. (...) O ideal de Marcuse, ideal de longínquas ressonâncias míticas e utópicas, é a «sociedade como obra de arte.» (...) Chegado a este ponto, completa-se porventura o círculo, de forma que terá escapado à consciência do próprio Marcuse. É que, se o seu erro inicial (...) foi o de conceber uma sociedade unicamente horizontal, um jogo de forças humanas em tensão dialéctica, em choque, em apetência de repressividade ou de libertação, esquecendo (...) a profundidade e a altura do espírito, que mais tarde ou mais cedo, mesmo no seio do turbilhão social ou da pressão da massa, se nos reencontra como questão pessoal a sós consigo própria, obrigando-nos a responder como indivíduos e logo como pessoas aos desafios metafísicos do ser e do nada, da vida e da morte. (...) Marcuse repõe, talvez sem dar por isso, muito embora em termos aparentemente só humanistas, o velho ideal religioso e agustiniano da «cidade de Deus», reergue das cinzas uma nova sacralização, recusa um Deus que fosse manifestável iconograficamente (Marcuse é decididamente um iconoclasta), mas para o ressuscitar como ordem estética."
António Quadros
Ficção e Espírito
(1971) pp.239, 240 e ss.
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