quarta-feira, 28 de março de 2012

Medo, dizes...


"Eu almoçara e jantara, e bebera, e as crianças tinham fome. (...) Eu envaidecia-me com a minha carreira, e a escravidão era ainda uma carreira. Vento, vento, sopra as velas, o homem sofre, sopra as velas, o homem não conhece o seu ódio e o seu pânico criou um mundo falsificado, sopra as velas, vento, o homem refastela-se, adormece, contempla o seu miserável umbigo, sopra as velas, vento, mas que vento, que nau, que porto, e porque é que o medo nu, o medo absoluto, o medo indecifrável é a soma conclusiva, a palavra final, a queda de toda a sabedoria penosamente conquistada pelos anos difíceis? ... medo, dizes, quem é que tem medo?"

António Quadros
do conto «Ao longo da nave»
em Histórias do Tempo de Deus (1979)

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