segunda-feira, 5 de março de 2012

O senhor, qual a sua opinião?

Delfim Santos
"Um  episódio quase anedótico (...) marcaria para sempre a nossa relação de amizade, que nunca esqueci e que ele próprio se divertia às vezes a evocar.
Foi numa das primeiras aulas do Curso [de Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa]. Delfim Santos ia perguntando a vários alunos se eram capazes de estabelecer uma distinção nítida entre a filosofia e a ciência. As respostas dos caloiros que nós éramos saíam-nos titubeantes e inseguras. A certa altura, volta-se para mim:
- O senhor, qual a sua opinião?
Fiquei paralisado, mudo, sem saber o que dizer.
- Fale mais alto. Olhe, venha aqui para o pé de mim.
Levantei-me e lá fui, pálido, para junto da secretária dele, enquanto Delfim Santos me fitava com um sorriso que me parecia profundamente cínico.
- Então, o que pensa do assunto?
Saíu-me então uma explicação, que pôs toda a sala a rir, mas que Delfim Santos, por incrível que pareça, tomou ou fingiu tomar a sério, dela partindo para uma sábia digressão acerca das conotações entre a metafísica e a epistemologia, um dos seus temas favoritos.
- A verdade, disse eu, mais ou menos e tanto quanto me lembro, é como o que está detrás de uma porta fechada. A porta está fechada a sete chaves e todas as chaves se perderam. Os homens querem saber o que há do outro lado. Os que mais se esforçam por saber são os cientistas e os filósofos...
Os cientistas atacam a porta propriamente dita. Analisam o seu material, a sua textura, os seus mecanismos. Procuram as leis físicas desse material, a estrutura atómica, etc... É um trabalho longo e árduo, que exige equipas dos mais variados especialistas.
Mas os filósofos...
E aqui hesitei, olhei em minha volta, fixei-me no seu olhar e no seu famoso sorriso ameaçadoramente irónico. 
- Fale, não tenha medo, os filósofos...
- Os filósofos, concluí num assumo de valentia, (...) são os que espreitam pelo buraco da fechadura...
Gargalhada geral. Mas começou aqui  a nossa amizade e foi talvez a razão (porque achou graça), da benevolência com que sempre me classificou, nessa noutras disciplinas em que também o tive como professor."

António Quadros
"Delfim Santos, Introdução à vida e à obra"
Octogésimo Aniversário do Nascimento do Prof, Delfim Santos, Comemorações.
Centro Cultural Delfim Santos, Lisboa, 1990.

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