"A arte de contar mergulha as suas raízes num mundo primitivo ou primordial que, no entanto, nos habita ainda. Arcana ars foi o centro irradiante de onde nasceram, em formas cada vez mais independentes e separadas, a poesia, o drama, o actual romance e, até, a filosofia, se nos lembrarmos de que nos filósofos pré-socráticos, mesmo num Platão ou num Plotino, o mito mal se deixa cobrir pela reflexão. Contar foi reconstituir em palavra, em voz e em música os actos originais que fundaram o cosmos e o homem. Contar, imitando o ritmo do verso o próprio ritmo da natureza e dos ciclos criadores estabelecidos pelos deuses e, pelos génios e pelos heróis, foi manter viva, através de gerações e para além do tempo, uma tradição apontando a mitos antigos e eternos pelos quais os homens se habilitariam ao «conhece-te a ti mesmo» que, em Sócrates, aparece repetido e todavia de certo modo negado. Contar foi, afinal, interpretar o tempo presente à luz de um tempo cujos pontos idênticos e equidistantes existem infinitamente longe no futuro, de tal modo que, em última análise, passado e futuro se dão as mãos graças à palavra, anuladora do tempo, do contador de mitos ou de histórias. Assim, no mais significativo dos contos em terra portuguesa originados, o conto dos Lusíadas-argonautas que Luís de Camões narrou em estâncias epopeicas, a gesta do descobrimento é actualizada em mito, não com algo que existe no passado, mas com algo que coexiste e coexistirá sempre ao tempo dos Portugueses, dinamizando toda a sua história e marcando ao futuro uma interpretação que transformará o ciclo da viagem-tempestade-descoberta-regresso em substância de uma vida reintegrada nos arcanos divinos - pois também o homem parte, sofre e só depois de se encontrar poderá reintegrar-se no seio de uma realidade transcendente e primordial. (...)"
António Quadros
Do prefácio a Adeus, Amigo!... (1960)
de Maria Irene Dionísio
de Maria Irene Dionísio
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