"Há almas embrionárias, velhos lojistas que olham para si próprios com
terror. A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara
a cara. Não se atrevem ou ignoram-na: a outra existência falsa acabou
por os dominar. Não há mascara que não custe a arrancar, há mentiras que
têm raízes mais fundas que a verdade. Por isso, para uns não morrer é
continuar a jogar o gamão pela eternidade, para outros é juntar uma
moeda a outra moeda, um dia a outro dia inútil. Sempre... Já na botica
dois idiotas recomeçaram com escrúpulo uma partida que deve durar cem
anos, e o bocal amarelo, as moscas mortas estão ali com outro ar.
Fixaram-se. Estão ali embirrentas e sórdidas para toda a eternidade.
Pouco e pouco o sonho dissolve, a nódoa d'oiro alastra. Vai mexer com o
subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso há dois mil
anos, sobressalta o instinto, bole com todas as almas sobrepostas até
ao fundo da vida. Transforma, volta a existência do avesso, deita o muro
abaixo. Por ora é só uma ideia, mas sai-nos de cima o peso do mundo...
Mexe em tudo, revolve todas as raízes que se apoderaram da vila. O
sonho cai na regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não
atreve, nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos, na
paciência de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia.
Certas existências são formidáveis, outras existências são como alcovas
onde nunca entrou a luz (cheiram a relento) e onde agora se agita e
gesticula um ser desconhecido. Certas existências são feitas de ódio
minúsculo, de inveja que sorri porque nem a inveja se atreve. Certas
existências são crepusculares. Em certas existências são os mortos que
ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulcro.
Quase toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram e agora
perguntam-se: Sou eu? sou eu?
Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. (...)"
Raul Brandão
Húmus (1921)
Sem comentários:
Enviar um comentário