quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Há almas embrionárias


"Há almas embrionárias, velhos lojistas que olham para si próprios com terror. A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara. Não se atrevem ou ignoram-na: a outra existência falsa acabou por os dominar. Não há mascara que não custe a arrancar, há mentiras que têm raízes mais fundas que a verdade. Por isso, para uns não morrer é continuar a jogar o gamão pela eternidade, para outros é juntar uma moeda a outra moeda, um dia a outro dia inútil. Sempre... Já na botica dois idiotas recomeçaram com escrúpulo uma partida que deve durar cem anos, e o bocal amarelo, as moscas mortas estão ali com outro ar. Fixaram-se. Estão ali embirrentas e sórdidas para toda a eternidade. Pouco e pouco o sonho dissolve, a nódoa d'oiro alastra. Vai mexer com o subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso há dois mil anos, sobressalta o instinto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma, volta a existência do avesso, deita o muro abaixo. Por ora é só uma ideia, mas sai-nos de cima o peso do mundo... Mexe em tudo, revolve todas as raízes que se apoderaram da vila. O sonho cai na regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos, na paciência de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia. Certas existências são formidáveis, outras existências são como alcovas onde nunca entrou a luz (cheiram a relento) e onde agora se agita e gesticula um ser desconhecido. Certas existências são feitas de ódio minúsculo, de inveja que sorri porque nem a inveja se atreve. Certas existências são crepusculares. Em certas existências são os mortos que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulcro. Quase toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram e agora perguntam-se: Sou eu? sou eu? Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. (...)"

Raul Brandão
Húmus (1921)

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