"Caro Gilberto, estás demasiadamente longe para me explicares, bebendo comigo um chope carioca ou um cafezinho português, o que é isso de saciologia, que à primeira vista parece palavra gralhada pela revisão. Será sociologia goiana, sociologia de Goiás, esse grande território e Estado mal conhecido dos próprios brasileiros? Abro o livro: é poesia, não sociologia. Recorro então a um dicionário etimológico e descubro, entre sachar e saciar, a palavra saci, substantivo masculino de origem tupi: entidade fantástica do folclore brasileiro, que assume a forma de um negrinho de uma perna só, que usa cachimbo e um pequeno barrete vermelho na cabeça, e que persegue os viajantes nos caminhos.
Desenho de Monteiro Lobato |
Quase uma teoria do saudosismo poético, essa teoria luso-galaico-brasileira, que supera em complexidade e em compreensão de realidade a filosofia da memória do tempo, segundo um Bergson ou um Proust!
É na verdade a saudade, a saudade mitogenizante que, ao longo do livro, aqui e ali, e outra vez, traz de volta o pequeno saci maravilhoso e pícaro, símbolo desse outro lado do espelho da terra goiana visível, que é com o de Alice, o do “real absoluto”. [...]
Saciologia Goiana desenvolve-se aliás, em estrutura coerente, fazendo o levantamento saudosista e mítico de Goiás, cuja literatura e folclore o poeta usa e assume, assim fazendo convergir o fundo e a forma para uma finalidade comum. Sucessivamente, Gilberto nos apresenta efectivamente poemas intitulados "Goiás", "Geografia do Mito", "Descrição", "Fronteiras", "Ser tão Camões"(religando a paisagem e a inspiração espontânea da poesia goiana à matriz luso-camoneana), e ainda "Caminhos", "Localidades", "Hidrografia", "O Rio", "Etnologia", "O Mato Grosso Goiano", "História", "Conto de Fada", "Manifesto da Cozinha Goiana", etc., etc, num intento global de reconstituição poética de uma região, de uma “alma colectiva”, de uma geografia natural e humana, que temos de considerar não só raro, como também realizado nos termos a si próprios propostos pelo autor.
Professor, historiador da literatura e crítico, autor de obras neste campo tão notáveis com A Poesia em Goiás, Drummond – a Estilística da Repetição. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, Camões e a Poesia Brasileira ou A Retórica do Silêncio, entre outros, Gilberto Mendonça Teles, também o poeta do Pássaro de Pedra, Sintaxe Invisivel, A Raiz da Fala e Arte de Armar, conseguiu de facto em Saciologia Goiana, a proeza de reverter, escritor erudito que é, a simplicidade de uma inspiração popular. Proeza porque só poucos (com entre nós um Vitorino Nemésio), podendo despojar-se do vestuário intelectualista, a têm ao seu alcance!"
António Quadros
"Dois notáveis brasileiros: Lêdo Ivo e Mendonça Teles"
em Tempo - Ideias & Livros (3 de Fevereiro de 1983)
"Dois notáveis brasileiros: Lêdo Ivo e Mendonça Teles"
em Tempo - Ideias & Livros (3 de Fevereiro de 1983)