sexta-feira, 30 de março de 2012

Um caixeirola frívolo faz dançar uma mesa pé de galo

"Ora tu conheces bem o que eu penso do espiritismo. Penso que é um erro confiar nesse processo, porque é a subordinação da liberdade da transcendentalidade à vontade prepotente do homem. Eis porque os resultados das comunicações mediúnicas não correspondem nunca às esperanças e tudo se passa ao nível da vulgaridade, com mensagens pessoais que nada adiantam acerca do outro lado, a maioria das vezes resultantes, ou de burlas, e nem vale a pena falar nisso, ou de fenómenos psíquicos de sugestão ou de auto-sugestão (...). A transcendentalidade guarda e guardará a sua virgindade. A nossa curiosidade é impotente. (...) A transcendentalidade é insusceptível de estupro. Oferece-se, coqueteia connosco; faz-nos negaças. Mas a conquista é impossível. (...) Um caixeirola frívolo faz dançar uma mesa pé de galo. Os espíritos têm de acudir prestes, a aturar as massadorias do marçano ocioso."

António Quadros
[e Sampaio Bruno, entre o texto]
em Uma Frescura de Asas (1990)

quarta-feira, 28 de março de 2012

Medo, dizes...


"Eu almoçara e jantara, e bebera, e as crianças tinham fome. (...) Eu envaidecia-me com a minha carreira, e a escravidão era ainda uma carreira. Vento, vento, sopra as velas, o homem sofre, sopra as velas, o homem não conhece o seu ódio e o seu pânico criou um mundo falsificado, sopra as velas, vento, o homem refastela-se, adormece, contempla o seu miserável umbigo, sopra as velas, vento, mas que vento, que nau, que porto, e porque é que o medo nu, o medo absoluto, o medo indecifrável é a soma conclusiva, a palavra final, a queda de toda a sabedoria penosamente conquistada pelos anos difíceis? ... medo, dizes, quem é que tem medo?"

António Quadros
do conto «Ao longo da nave»
em Histórias do Tempo de Deus (1979)

terça-feira, 27 de março de 2012

Acrata

Agostinho da Silva
"[Agostinho da Silva] seria um anarquista em estado puro, se tal não implicasse, na evolução semântica da própria palavra, a recusa da arquias, ou seja dos princípios sagrados. Mas, se não é um anarquista é decerto um acrata, desconfiado perante todos os poderes e prisões deste mundo. (...) Sem teologias, que a seu ver dividem; sem filosofias, que a seu ver complicam. É um magistério, o seu, do despojamento, da abertura total da alma e da disponibilidade do espírito, da recuperação, assim, do que da virtualidade infinita da infância os homens esqueceram. (...) O que será no fim é o que é desde origem. Dizem-lhe que é utópico, que tal não é realizável neste topos ou neste espaço, o mundo sublunar. Responde que a utopia não é o irrealizável, mas o que ainda não se realizou."

António Quadros
"Agostinho, Álvaro, Marinho: três mestres -  um testemunho", 
em Memórias  das Origens, Saudades do Futuro (1992), p. 312.

segunda-feira, 26 de março de 2012

sexta-feira, 23 de março de 2012

Leonardo Coimbra, a luta pela imortalidade

Diário de Lisboa, nº 267, 15 de Fevereiro de 1922, p. 3.

Raul Lino, o último arquitecto

Raul Lino
"Já tempo passou. Já a nossa perspectiva se ampliou numa época que, afinal, ainda está relativamente próxima. Já Raul Lino nos aparece, não como um arquitecto entre outros, mas porventura como o último arquitecto português, se à palavra quisermos restituir a sua verdade e antigo sentido. Decerto falamos por algum modo de metáfora, porque a herança nunca se perde totalmente, mesmo quando pareça esquecida. (...) Raul Lino adopta a interpretação tradicional da mónada humana, com um complexo conjugado de corpo, alma e espírito. Di-lo e repete várias vezes, não é verdadeiro arquitecto o que só edifica para os corpos (...) Quando Raul Lino desenvolve a sua teoria do espaço habitacional, fá-lo em termos, precisamente de corpo-alma-espírito (...) Daí que a sua preocupação de que as portas não sejam consideradas meros elementos de comunicação, mas antes meios para fechar, para guardar. (...)"

António Quadros
"Raul Lino, o último arquitecto"
Conferência proferida a 1 de Fevereiro de 1991 no Instituto Alemão, 
de Lisboa, num colóquio organizado pela Fundação Ricardo Espírito Santo e Silva.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Leonardo

Leonardo Coimbra
Ilustração Portuguesa
II serie, nº 814, 24 de Setembro de 1921, p. 206.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Diga-me, Dr. Mendonça

‎"Diga-me, Dr. Mendonça, quando é que tem tempo para pensar... para se recolher... para descobrir o que realmente é... Quando, se a vida não nos dá tempo... intimidade... liberdade? Andamos sempre rodeados de pessoas... os outros que não nos largam... querem que sejamos assim... ou assim... (...) e aconteceu-me fugir... tentar fugir... largava tudo, fosse o trabalho ou a casa... e andava pelas ruas... ao acaso... andava, andava, e esquecia-me onde estava... quem era. (...) As pessoas sentem-se inseguras diante dos loucos, mesmo que sejam inofensivos, quase normais, e sabe, eu penso que esta insegurança é boa. Devemos estar inseguros. Devemos pensar o que não foi pensado. Devemos suspeitar, porque a vida é infinitamente complexa e nunca ninguém lhe deu a volta.
(...)
- Você pensa talvez que já estou a ficar parecido com eles? Que sou um velho maníaco, a pedir reforma? É capaz de ter razão, é capaz de ter razão..."

António Quadros
do conto «A Palavra», 
em 'Histórias do Tempo de Deus' (1979)

Razão escondida

‎"Aprendi a amar a liberdade nos meus dias de vagabundo. A liberdade é a abertura da carta de prego que cada um leva consigo. (...) É preciso que os homens descubram a razão que trazem escondida, na sua alma de peregrinos. É preciso que descubram a verdadeira razão de viver, de sofrer e de morrer. É preciso que se sintam irmãos, precisamente porque são diferentes. É preciso que se sintam homens, precisamente porque não são autómatos e não foram fabricados em série por um Deus relojoeiro."

António Quadros
do conto «Império», 
em 'Histórias do Tempo de Deus' (1979)

É preciso

‎"É preciso que ninguém mais sofra, é preciso que os homens sejam irmãos, é preciso que a luta contra o sofrimento não seja uma outra forma de sofrimento, é preciso inventar a alegria, (...) é preciso levar a esperança aos corações desesperados que avançam para a morte, é preciso que a esperança não seja só um aceno e uma ilusão, é preciso que o cortejo infindável passe por sobre o abismo. (...)"

António Quadros
do conto «Ao longo da nave», 
em 'Histórias do Tempo de Deus' (1979)

sexta-feira, 9 de março de 2012

Meu Caro António Quadros

António Quadros, António Telmo e Maria Antónia
"Estremoz
31 de Maio de 1986

Meu caro António Quadros

(...)

Eu vejo no seu livro [Portugal, Razão e Mistério], não obstante o seu autor parecer ou julgar dizer o contrário, uma dimensão interior, quiçá inconsciente, convergindo com a posição dos nossos mestres [José Marinho e Álvaro Ribeiro]. A imagem da Pátria é a de um povo nómada, navegante do tempo por sete graus sucessivos; se a ideia não fosse prejudicada pela imagem genealógica da árvore cujas raízes afundam na terra megalítica, o mesmo paradigma numeral explicaria talvez nos sete climas dos barcos que construímos cortando a árvore. Mas a minha alegria é a de ver que o grupo da filosofia portuguesa se revela bem vivo, no pensamento, através de livros de excepcional valor, como os do Orlando [Vitorino], os do Pinharanda [Gomes], os seus. Disse-me um dia o António Quadros, na minha casa em Estremoz, que não lhe parecia que nenhum de nós fosse capaz de realizar uma obra verdadeiramente filosófica como a do Álvaro Ribeiro ou do José Marinho. Vamo-nos superando e este seu livro é já um grau acima dos outros. O que nos dirão o segundo e terceiro volumes?
Só depois, pelo menos do segundo, uma vez de posse de todos os elementos do seu pensamento, lhe escreverei a carta prometida. Esta é mais o testemunho da minha amizade e da minha solidariedade espiritual consigo. Interessa-me particularmente a relação que estabelece entre a Igreja de Pedro e a Igreja de João, mas, antes da publicação do segundo volume, é prematuro reflectir consigo sobre essa relação, pôr interrogações, levantar obstáculos, traçar vias.
(...) Faço votos que obtenha a mais vasta e, sobretudo, profunda influência.
Aproveito a ocasião para lhe agradecer os dois volumes de «Fernando Pessoa». Aqui também todos temos de reconhecer que o António Quadros é o único que tem sabido pôr as coisas no lugar sobre o grande poeta e quem quiser estudá-lo e compreendê-lo terá de passar através do que V. tem vindo a escrever.
Creia que sou inteiramente sincero. Se não o fosse, não teria junto atrás um apontamento de objecção que desenvolverei na carta prometida.

Um grande abraço (...)

António Telmo"

quarta-feira, 7 de março de 2012

Nascerá o amor absoluto

Dalila Pereira da Costa
1918-2012
"Nascerá o maior amor, o que concebe a saudade, na ausência - o amor absoluto." 

Dalila Pereira da Costa, Rádio Lusophónica (Salzburgo) 2009


Só amor devia ser


"Queria só contribuir para que tu, amigo desconhecido, sentisses dentro de ti uma só coisa, o silêncio. Podes chamar-lhe também, plenitude. Ou harmonia. Ou no princípio, senti-lo como uma música leve. Mas o seu outro lado é mesmo silêncio. E à tua volta todas as coisas, começam também a tocar, participar dessa harmonia. Suspensão, também te poderá acontecer. (...) Chama-lhe paz. Vem aos pedaços, em dias mais ou menos prolongados e juntado-se depois uns aos outros, até fazer uns inteiros cada vez maiores. (...) Mas na dor e tristeza sentida. E fica só essa entrega, consumação em doçura. Em lamento de silêncio. Porque tudo é sofrimento de não ser digna. (....) Só sofrimento de ofensa, dureza dada em paga do amor, que só amor, redobrado, puro, estreme, devia ser."

Dalila Pereira da Costa
"O Verbo Secreto", em Os Jardins da Alvorada
Lello & Irmãos Editores
Porto (1981), pp. 112-113.

segunda-feira, 5 de março de 2012

O senhor, qual a sua opinião?

Delfim Santos
"Um  episódio quase anedótico (...) marcaria para sempre a nossa relação de amizade, que nunca esqueci e que ele próprio se divertia às vezes a evocar.
Foi numa das primeiras aulas do Curso [de Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras de Lisboa]. Delfim Santos ia perguntando a vários alunos se eram capazes de estabelecer uma distinção nítida entre a filosofia e a ciência. As respostas dos caloiros que nós éramos saíam-nos titubeantes e inseguras. A certa altura, volta-se para mim:
- O senhor, qual a sua opinião?
Fiquei paralisado, mudo, sem saber o que dizer.
- Fale mais alto. Olhe, venha aqui para o pé de mim.
Levantei-me e lá fui, pálido, para junto da secretária dele, enquanto Delfim Santos me fitava com um sorriso que me parecia profundamente cínico.
- Então, o que pensa do assunto?
Saíu-me então uma explicação, que pôs toda a sala a rir, mas que Delfim Santos, por incrível que pareça, tomou ou fingiu tomar a sério, dela partindo para uma sábia digressão acerca das conotações entre a metafísica e a epistemologia, um dos seus temas favoritos.
- A verdade, disse eu, mais ou menos e tanto quanto me lembro, é como o que está detrás de uma porta fechada. A porta está fechada a sete chaves e todas as chaves se perderam. Os homens querem saber o que há do outro lado. Os que mais se esforçam por saber são os cientistas e os filósofos...
Os cientistas atacam a porta propriamente dita. Analisam o seu material, a sua textura, os seus mecanismos. Procuram as leis físicas desse material, a estrutura atómica, etc... É um trabalho longo e árduo, que exige equipas dos mais variados especialistas.
Mas os filósofos...
E aqui hesitei, olhei em minha volta, fixei-me no seu olhar e no seu famoso sorriso ameaçadoramente irónico. 
- Fale, não tenha medo, os filósofos...
- Os filósofos, concluí num assumo de valentia, (...) são os que espreitam pelo buraco da fechadura...
Gargalhada geral. Mas começou aqui  a nossa amizade e foi talvez a razão (porque achou graça), da benevolência com que sempre me classificou, nessa noutras disciplinas em que também o tive como professor."

António Quadros
"Delfim Santos, Introdução à vida e à obra"
Octogésimo Aniversário do Nascimento do Prof, Delfim Santos, Comemorações.
Centro Cultural Delfim Santos, Lisboa, 1990.

sexta-feira, 2 de março de 2012

1918-2012

Dalila Pereira da Costa

Dalila Pereira da Costa (1918-2012) nasceu e morreu no Porto. Foi uma das mais importante figuras da nossa filosofia. Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, viveu em São Paulo, entre 1959 e 1965 e mais tarde na Bélgica antes de se mudar definitivamente para o nº 444 da Avenida 5 de Outubro no Porto.
Publicou, entre outras obras: O esoterismo de Fernando Pessoa (1971); A força do mundo (1972); A nova Atlântida (1977); Místicos portugueses do século XVI (1986); Gil Vicente e sua época (1989); Os sonhos: porta de conhecimento (1991); Mensagens do Anjo da Aurora (2000); As Margens Sacralisadas do Douro Através de Vários Cultos (2006), etc.