segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa

Em 1960 Ana Hatherly edita a antologia Caminhos da Moderna Poesia Portuguesa na qual figuram os escitores, Alexandre O'Neill, António de Navarro, António Quadros, David Mourão Ferreira, Eugénio de Andrade, Fernanda de Castro, Miguel Torga, Natália Correia, Natércia Freire, Sophia de Mello Breyner Andresen, Vitorino Nemésio, entre muitos outros.
Nesta altura, António Quadros já tinha publicado dois livros de poemas, (Além da Noite e Viagem Desconhecida) dos quais Ana Hatherly selecciona os poemas: «Poética Contraditória» (p. 54); «Todo o Dia a Minha Alma Soube a Lágrimas» (pp. 67-68); «De um Novo Continente» (p. 72); e «Invenção da Morte» (pp. 88-89). 

Sobre o primeiro poema diz Ana Hatherly: "Pertencendo a um livro chamado «Viagem desconhecida», este soneto (2 quadras, 2 tercetos) é uma verdadeira introdução à poesia. Enquanto incita os poetas a transcenderem-se na criação poética, ao mesmo tempo indica ao leitor os caminhos maravilhosos que a poesia percorre na sua surpreendente viagem no tempo e na alma humana."

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

ser possível e ser necessário

São Tomás de Aquino
"São Tomás é claro ao afirmar que ainda que as coisas dependam da vontade de Deus como da sua causa primeira, não é por isso que se deve dizer que não há necessidade absoluta nas coisas, ao ponto de admitir que tudo é contingente. É certo que um efeito é contingente quando não procede necessariamente da sua causa e que as coisas não procederam de Deus, por necessidade da sua natureza, mas pela sua vontade e sem qualquer constrangimento, mas nada obsta a que uma coisa seja necessária e que a sua necessidade tenha uma causa, como acontece nas demonstrações. (...) Aceitar que certas criaturas tenham sido constituídas necessárias por Deus não implica, no entanto, que sejam independentes de Deus. Toda a criatura d'Ele depende, como o efeito da sua causa, pelo que até os entes necessários são dependentes do influxo de ser da primeira causa. Por conseguinte, a relação com Deus qualifica permanentemente a criatura; sem operação do poder divino, não poderia subsistir nem um instante, seria reduzida a nada. (...) Ao concluir que existe o primeiro movente, a primeira causa eficiente, o ser necessário por si que é causa da necessidade dos demais, o maximamente ente e uma inteligência providente que é causa (primeira e) final da ordem do mundo, definem-se cinco dimensões* do ser enquanto actualidade de todos os actos e perfeição de todas as prefeições, fundamento de tudo quando é. (...) As cinco vias partem de uma base existencial sensível, caminhando do visível para o invisível, do menos perfeito para o mais perfeito, dos seres para o Ser; em suma, progredindo da potência para o Acto."

Maria Inês Bolinhas
"Uma releitura das cinco vias de Tomás de Aquino à luz do conceito de ser" 
em A Questão de Deus na História da Filosofia, Sintra: Zéfiro, pp. 327-340.

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* As cinco vias: movimento, causa eficiente, ser possível e ser necessário, graus de ser e governo do mundo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Carta de António Quadros a António Telmo

"Vale de Óbidos, 27-02-1990

Meu caro António Telmo,

Escrevo-lhe de Vale de Óbidos (perto de Rio Maior), onde arranjámos uma casinha de campo, com um pomar, e onde esperamos tê-lo um dia, não muito distante, para conversarmos com calma à sombra de um grande limoeiro fronteiro à porta que da sala dá para o terreno arborizado em que ando a plantar um simulacro de jardim.
Tem a calma e o silêncio que pede este Outono da nossa vida. É uma paixão de Outono, para nós dois…
Recebi a sua carta e o seu livro. A sua carta melancólica, recordando os nossos amigos desaparecidos… O mundo faz-se e desfaz-se todos os dias e, para nós, mais se desfaz do que se faz. Ao contrário do Álvaro [Ribeiro], creio que a saudade é um sentimento positivo: por ela, eles não desapareceram por completo do nosso convívio; por ela, eles continuam a estimular-nos e a exigir de nós o possível e o impossível.
Que seria de nós, sem essa presença invisível dos mestres, aguilhões do nosso espírito, alimentando a nossa perpétua insatisfação? Por mim, continuo a conversar com eles, e se eles me dizem que fiz pouco, que quase nada fiz, então sou obrigado a continuar…Também os amigos da nossa idade, o Rui, o Francisco, o Morgado, o A. Coelho mantêm ou ajudam a manter o espírito do “57”. Eles acreditaram, trabalharam, não lhes podemos falhar, enquanto formos vivos.
(...)
Sei que você andou muito por baixo, e creia que pensei muito em si. Afinal de contas, mesmo pesando todas as diferenças, não seremos os dois, os mais afins de entre os discípulos de A. e M., da primeira geração? De certo, eu sou mais “ortodoxo” (talvez por falta de ousadia intelectual interior), decerto, você foi sempre mais fundo do que eu, em todas as vias por que enveredou. Você tem a capacidade de ir ao âmago dos problemas e de estabelecer sínteses fulgurantes, em palavras concisas. (...) Eu permaneço nos arredores, fascinado do lado de fora, sem contudo atravessar o umbral da porta. (...)
Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia, pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia de Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os nossos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnóstica.
Devo dizer-lhe também que o seu livro me deslumbrou. Decerto, já conhecia muitos dos capítulos. Agora reunidos, contudo, surgem em coerência, como um todo poderoso e unívoco, como uma viagem do seu espírito para um Monte Abiegno que você já atingiu, com o preço do seu isolamento, aí em Estremoz, e de renúncia às ambições, às glórias e aos interesses efémeros deste mundo.
Quando você escreve em Gnose:

Não sei como tentar, e se sei, temo
O fulgor essencial que mata ou cega,

fico a pensar que, ao dizer se sei, admite o quanto avançou já na via gnóstica. Teme o fulgor esssencial: será mesmo que mata ou cega (duas proposições, aliás, diferentes)? Leonardo, Marinho, não o terão experimentado, sem por tal terem morrido ou cegado? Fulgor da visão unívoca, de saudade, de graça, porventura do êxtase a que acedem certos místicos, como a Dalila… (...) Ando a pensar em escrever um terceiro livro de contos, que se intitularia Mistérios. Já comecei mesmo a escrevê-lo, mas como o meu espírito anda demasiado errante, o querer fazer muitas coisas ao mesmo tempo porque a clepsidra se nos vai esvaziando a olhos vistos (...) estou parado a meio da primeira história...*
Contudo, segui-o apesar disso durante grande parte do caminho: o bastante para lhe poder dizer agora que vocês é dos poucos, de entre os discípulos, que deixará uma obra consistente e com páginas fulgurantes e inesquecíveis. (...)

Não deixe de me responder.
Um abraço do seu dedicado
António Quadros"

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*António Quadros não chegaria a publicar mais nenhum livro de contos, ainda assim, daria à estampa mais três obras: Memórias das Origens. Saudades do Futuro; Estruturas simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa; Trovas para o Menino Imperador do Espírito Santo.

«Renovação Democrática»


"A Renascença Portuguesa chegou a editar um modesto quinzenário que pretendeu exprimir as relações da nova cultura com a nova política. A essa revista efémera foi dado o significativo título de «Princípio», na qual a esquecida palavra «República» era substituída pela palavra «Democracia», termo de incerteza semântica nas discussões dos políticos de tendências várias e contraditórias. No quarto e último número deste periódico, visado pela censura militar, ainda foi inserto um esperançoso anúncio do boletim francês da «Sociedade das Relações Culturais entre a U.R.S.S. e o Estrangeiro».
Leonardo Coimbra absteve-se de dar a colaboração prometida ao novo periódico de renovação democrática. Não concordava com os tópicos de uma doutrina extremista, assimilada facilmente por adolescentes sem experiência politica. Amenamente fazia a crítica de alguns artigos que considerava teoricamente adversos à distinção entre o Mal e o Bem, polos recíprocos da liberdade e da justiça."

Álvaro Ribeiro
Memórias de um Letrado III pp. 36-37
Guimarães Editores (1980)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O 3º volume de «Portugal, Razão e Mistério»


A última carta que António Quadros envia a António Telmo data de Fevereiro de 1991. É uma epístola onde o escritor descreve, uma vez mais, a luta que sentia para escrever o terceiro volume de Portugal Razão e Mistério. Nesta altura, debatia-se, escrevia, riscava tudo, rasgava as páginas, voltava ao início e mudava  várias vezes o nome do livro, para ver se o conseguia escrever. Mas não conseguia. Não conseguiu. Foi a partir de 1987 que começou a pairar sobre António Quadros, mas também entre os restantes homens da Filosofia Portuguesa, e não só, o fantasma do terceiro livro de Portugal, Razão e Mistério. O projecto, nunca concretizado, conheceu o primeiro título logo naquele ano. A obra chamar-se-ia: Saudade da Pátria Prometida, título que António Quadros abandona e muda, no ano seguinte, para Filosofia Portuguesa e Razão Teleológica.
Podemos hoje falar, sem pudor, do sofrimento de António Quadros em relação a tudo isto, sofrimento várias manifestado a António Telmo, como é bem visível numa carta que envia ao autor de A Arte Poética em Janeiro de 1987:
“Só peço a Deus que me dê tempo, força e cabeça para concluir as obras que tenho projectadas. O terceiro e quarto volume de Portugal Razão e Mistério; um livro sobre a filosofia portuguesa, de Bruno a Orlando; um outro livro, sobre O Primeiro Modernismo Português […] e ainda outros que tenho na cabeça.”.
De tudo isto, António Quadros concluiu quase tudo, menos a terceira parte da sua obra maior. Chegaria, aliás, a confessar, uns dias depois, que devido ao cansaço provocado pelos recentes problemas de saúde, não estaria à altura do projecto. Efectivamente, a partir de 1990, os problemas de saúde de António Quadros agravam-se, embora, mesmo nos últimos anos, a sua vontade fosse a de finalizar o tríptico. No dia 22 de Março de 1990, volta a escrever a Telmo, contando como vivia os seus dias numa espécie de bloqueio interior. Por detrás deste bloqueio havia o receio de que o terceiro volume não tivesse a repercussão dos dois primeiros.

Ainda assim, a sua produção literária não diminuía. Nesse ano, estreia-se no romance e publica Uma Frescura de Asas, onde descreve os sintomas de uma angina de peito que sentira dois anos antes. Fizera também uma brilhante biografia de Sampaio Bruno, única entre os estudos sobre o filósofo d' A Ideia de Deus. Entre 1990 e 1991 prosseguem por via epistolar os contactos de António Quadros com António Telmo. Em carta enviada de Estremoz no dia 6 de Março de 1990, António Telmo lamenta novamente não ter ainda recebido o livro que formaria o tríptico de Portugal, Razão e Mistério e confessa ainda que António Quadros é um dos raros espíritos com quem convive superiormente. Uns dias depois, aconselha António Quadros, a deixar “entrever” o terceiro livro, “de modo a amar escrevê-lo”. Este conselho surge imediatamente depois de António Quadros ter confessado a António Telmo o que até hoje não se sabia: apenas escrevera o prólogo.

Tratava-se de um longo texto, já dactilografado, sobre a sua infância, a juventude, a família, a faculdade, o 57, os mestres Álvaro Ribeiro e José Marinho, os encontros com Mircea Eliade em Cascais e o grupo da Filosofia Portuguesa; entre outros: Afonso Botelho, António Braz Teixeira, Pinharanda Gomes, Dalila Pereira da Costa, Orlando Vitorino e António Telmo. Era, naturalmente, pouco, para o próprio António Quadros. Mas, quanto a nós, era muito, era tudo. 
O último livro, a derradeira palavra, seria uma saudação, um profundo e reconhecido agradecimento a todo o grupo. António Quadros viria a morrer no dia 21 de Março de 1993 com a obra completa.

António Quadros Ferro
adaptação livre de uma comunicação feita em Fevereiro de 2011 
por ocasião do Colóquio «A Obra e o Pensamento de António Telmo».

domingo, 22 de janeiro de 2012

Régio e Álvaro

José Régio
"José Régio era, para Álvaro [Ribeiro], não só o poeta católico, superior a Claudel, mas o ponto de referência da cisão entre os leonardinos e sergianos. Não podia esquecer a fuga de Régio para o campo sergiano. Mas tinha de lhe perdoar. Para tanto escreveu essa admirável interpretação psicológica e tipológica A Literatura de José Régio (1969) obra nada atendida pelos literatos, e que alguns poderão considerar como exorbitante do valor literário de Régio. Ilusão: Régio é um grande escritor, aqui e em qualquer parte do mundo. Régio é um admirável pensador de ideias e perscrutador de mistérios humanos e divinos. Álvaro devia-lhe, e não apenas por amizade, uma exege. Que resultou em hermenêutica: ele preencheu, com dados próprios, as eventuais carências filosóficas do pensamento de Régio. A quem colocou no seu lugar, entre os que abandonaram a escola leonardina, criacionista, em favor da escola sergiana, cousista. Parece que Régio entendeu bem como, sob a apologia, lhe era enviada a epístola correctiva.(...) Ao publicar a obra A Literatura de José Régio, Álvaro Ribeiro deu um passo voluntário e comedido para uma aproximação formal e essencial da Filosofia e da Literatura portuguesas. (...) A julgar a literatura regista, Álvaro teria também de julgar a literatura alvarista pois, estamos em crer, as situações espirituais de Álvaro e de Régio são afins, embora existencialmente diversas. Mas houve lugar para a biografia e, onde a houve, também houve lugar para a autobiografia: o percurso espiritual de um filósogo em face de um seu irmão espiritual, de um seu companheiro natural. Régio foi em Literatura o que Álvaro veio a ser em Filosofia: a singularidade situacional, o exílio."

Pinharanda Gomes
em A Escola Portuense
(2005), p.151

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Reuniões do senso comum e da fantasia colectiva

"A solenidade das conversas não é a solenidade dos Congressos. Os Congressos, de um modo geral, servem para dar aparência singular ao que é quotidiano e habitual. Com esta solenidade exterior só aparentemente se começará a consagrar a filosofia portuguesa, visto que, de tais reuniões, dirigidas predominantemente aos sentidos da vista ou do ouvido, apenas se deduz a visão e a audição do que já existia, ou do que não existia nem jamais existirá. São, portanto, reuniões do senso comum e da fantasia colectiva."

Álvaro Ribeiro
 «Os Reis Magos e a Tradição Portuguesa», 
em As Portas do Conhecimento, IAC, 1987, p. 132.

À espera de Marinho

José Marinho

"O magistério de Álvaro [Ribeiro] e de [José] Marinho ultrapassava o plenário. Cada um dos discípulos dispunha de frequentes oportunidades de conversar com Álvaro a sós: ou em sua casa, ou noutro Café, ou no mesmo, a hora diferente da habitual. Era um dos aspectos sugestivos da vida do grupo, porque tanto Marinho como Álvaro apreciavam conversas separadas, mas não se mostravam muito agradados quando vinham a saber, do outro, que as havia. Com Marinho estes encontros separados eram por via da regra na Pastelaria Nova Iorque, a Entrecampos (agora um banco), onde também aparecia o matemático lógico Germano Rocha, que se exaltava nas discussões com Marinho. Pelo contrário, Álvaro nem permitia, nem dava azo a exaltações. Tudo o que se dizia tinha de ser muito bem pensado, e muito bem dito. Regra de ouro: um pensamento correcto exprime-se, sem atropelos, numa frase correcta, linear, bem construída. Como, às vezes, com certa ironia Marinho murmurava, Álvaro do que gostava era de silogismos. Por sua vez, Álvaro ironizava que Marinho do que gostava era de enigmas. Tudo em amizade, na verdade. (...)
As tertúlias da «Filosofia Portuguesa» raro iniciavam a conversa sobre um tema, antes de José Marinho chegar. Decerto os mais novos discorriam acerca disto ou daquilo, de livros que andavam lendo, ou laborando em miscelâneas de opinião, Álvaro Ribeiro assistindo, paciente, dizendo uma ou outra palavra, para ajudar a exposição de cada um, mas evitava animar instinto dialéctico, e a tendência para a discussão. (...) a aula só começava com Marinho, cujo horário de trabalho não lhe permitia chegar antes das seis da tarde. Ao aparecer, e depois de se arrumar indagava: «Qual é o tema?», ou «Que tema há para hoje?» (...) É relevante fixar este costume, de não se iniciar a conversa na ausência de Marinho, como que num acto de lealdade. (...) Ambos se tratavam por «senhor» não havia tu cá tu lá entre ambos. (...) Depois da morte de José Marinho verificou-se uma interrupção das tertúlias das Quintas Feiras (...) Numa carta que de Álvaro recebi ainda nesse ano de 1975, explicava ele a suspensão das reuniões, confessando como seria doloroso estarmos juntos à espera do Mestre, que não viria. (...)"

Pinharanda Gomes
em "A tertúlia de Álvaro Ribeiro e de José Marinho"
Revista Nova Águia, nº 8, 2011, pp 117-125.

Ainda João Gaspar Simões, nos 25 anos da sua morte

João Gaspar Simões
"(...) Gaspar Simões andava sempre carregado de trabalho (crítica semanal no Diário de Lisboa e no Diário de Notícias, colaboração literária no Diário Popular e noutros jornais, a redacção da sua própria obra, e ainda a escravatura de tradutor em que por necessidade nunca deixou de andar enredado). No entanto, era frequente passar pelo café Brasileira do Chiado nos fins de tarde, quando se deslocava para entregar, ou artigos nos jornais, ou lotes de páginas traduzidas nos editores. Era pessoa discreta, mas controversa, nos meios literários pois todos e cada um temiam o seu juízo quando lhe enviavam um livro para crítica, um trabalho que exerceu até à morte, vencendo as objecções que lhe foram movidas pela corrente erudita ou crítica mediata, proposta pelas novas gerações das Faculdades de Letras, que recusavam valor científico à crítica imediata, da qual Gaspar Simões era o pontífice indiscutido. E, não obstante, foi no contexto do criticismo presencista e do exercício da crítica imediata, que a literatura portuguesa cresceu e floresceu. Gaspar Simões algumas vezes se enganou nos prognósticos, mas em muitas outras teve a premonição de, nas suas leituras, adivinhar se os autores novíssimos seriam, ou não, autores com futuro."

Pinharanda Gomes
em "A tertúlia de Álvaro Ribeiro e de José Marinho"
Revista Nova Águia, nº 8, 2011, pp 117-125.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Tertúlia em casa de Adolfo Casais Monteiro

Delfim Santos

"(...) ao contrário de um simples serão de cavaqueio, o formato da tertúlia incluía então o revezar dos participantes no tratamento de um tema a ser debatido por todos os comensais: Casais [Monteiro], em postal a Delfim [Santos] de 22.11.42, informa que não tivera tempo para «preparar a perlenga» prevista para o dia seguinte, pedindo escusa da falta e solicitando mora de uma semana. E o mesmo Delfim, precisamente sobre uma sessão que iria registar para a posteridade e que aqui nos ocupará, esclarece que naquela noite «era Álvaro [Ribeiro] que pertencia fazer um pequeno relato de um dos livros de Leonardo [Coimbra], a que se seguiria discussão esclarecedora». Foi sobre um desses simpósios filosóficos mais formais, que pela noite se prolongavam após a ceia em casa do poeta seu condiscípulo, que Delfim Santos escreveu um relato à clef que agora remetia a Casais naquela carta, ocultando sob pseudónimo, como era corrente fazer-se, os nomes reais dos intervenientes: Álvaro Ribeiro se tornaria 'Alberto'; Sant'Anna Dionísio seria 'Rodrigo'; José Marinho manteria o seu nome próprio; Eudoro de Sousa se encobriria sob 'Ernesto'; Adolfo Casais Monteiro velar-se-ia em 'António' e por fim o próprio Delfim Santos se autonomeava 'Martinho', invocando o magistério haurido nas obras de Martin Heidegger. Expediente destinado apenas a leitores menos avisados pois os nomes apresentavam chaves de fácil leitura para os que conheciam este círculo filosófico..."

Filipe Delfim Santos
em "Um colóquio agora mais útil", 
Revista Nova Águia, nº 8, pp 39-40.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Teatro simbólico dos contos maravilhosos

Ilustração de Contes de ma Mère l'Oye
de Charles Perrault por Gustave Doré.
"Pretendeu-se que o conto maravilhoso constituía uma falsificação da realidade, pura e simplesmente porque narrava mentiras. Mesmo se entendido simbolicamente, tal género de literatura podia ser perigoso, pois daria talvez acesso a um sem-número de alienações na idade adulta: escapismo, perda de sentido do concreto, imaginação doentia, distanciação da realidade... As crianças, contudo, resistiram. (...) O deslumbramento perante o desconhecido, a atracção pelo enigmático e pelo misterioso, a decisão do trabalho e da investigação desinteressada, a capacidade de fugir às tiranias do mundo burocrático e imediato, a virtualidade sempre aberta da intuição, do sonho, do ideal, a conservação de um olhar inocente perante a espessura das coisas ou perante a presença dos males, das angústias e das dificuldades, a sublimação dos impulsos instintivos em obra criadora e fecunda, a disponibilidade diante do inesperado e do insólito são apenas algumas, de entre muitas dádivas que as crianças recebem na infância, dos contos maravilhosos. (...) À laboração misteriosa do inconsciente se devem muitas vezes, tanto como à própria razão consciente, os inventos da ciência ou os conceitos da filosofia. (...) Talvez que, aos jovens das gerações de hoje (...) tenham faltado os avós, as mães e as tias que sabiam contar histórias de fadas, pela calada da noite, a crianças palpitantes e deslumbradas. Talvez essa oportunidade perdida os tenha desequilibrado para sempre. Se não ressuscitamos o teatro simbólico dos contos maravilhosos, talvez o mundo pereça entre escombros, ou simplesmente se detenha, desgostado com a pobreza espiritual da humanidade nova..."

António Quadros
"Estruturas Narrativas do Maravilhoso"¨*
em Memórias das Origens Saudades do Futuro (1992) pp. 91-110
*De uma conferência proferida em 1973,  no anfiteatro da Biblioteca Nacional,
com o título  'O sentido Educativo do Maravilhoso', nome não dado pelo autor.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

1927-2012


Morreu esta quinta-feira o jornalista e escritor João Alves das Neves. Escreveu em Março de 2010 no seu blogue um valioso texto sobre a sua relação com António Quadros e um encontro com Fernanda de Castro.

Em 1988, João Alves das Neves e António Quadros coordenaram na Academia Paulista de Letras, em São Paulo, o I Encontro de Estudos Pessoanos, na companhia de Teresa Rita Lopes e João Gaspar Simões. Leia aqui.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

«Bandeira Preta» e «Mar Santo»

Branquinho da Fonseca

"[António Quadros] traçou uma brilhante interpretação, negligenciando a ordem cronológica das personagens nas publicações: Pedro é o menino que cresce numa vila circunscrita na zona de Viseu em  Bandeira Preta, ingressa na Universidade de Coimbra para encarnar o estudante Bernardo Cabral no romance Porta de Minerva, evoluindo depois para a personagem adulta de O Barão. Para além de ser possível e perspicaz associar estas figuras através de traços que permitem estabelecer ligações de continuidade entre elas, esta conclusão permite-nos deflagrar um fio condutor que perpassa toda a obra de Branquinho da Fonseca: um acentuado lirismo que, a par com o realismo e o grotesco, armam a obra. António Quadros, (...) ergue um inaudito e pertinente olhar sobre Bandeira Preta e Mar Santo [de Branquinho da Fonseca], remetendo-nos para uma vertente marcadamente enraizada na cultura lusa: a ligação ao mar ou ao rio como sustento."


Carla Edina Costa de  Figueiredo 
Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e Culturas (2006)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos


Em Outubro de 1967, António Quadros fez parte da delegação nacional ao III Congresso Mundial para o Apostolado dos Leigos em Roma, subordinado ao tema O Povo de Deus no Itinerário dos Homens que reuniu três mil pessoas vindas de 108 países tendo sido orador no Plenário do Congresso e nomeado, pelos quatro grupos linguísticos nele representados, porta-voz do «carrefour» "A apresentação da mensagem cristã ao mundo de hoje". Sobre este congresso, que provocou "verdadeiro alarme", "nos corredores do Vaticano e um pouco por todo o mundo" vale a pena ler o texto "Um congresso muito polémico", de Joana Lopes, publicado em 2007 no livro Entre as Brumas da Memória (Âmbar, 2007, pp.102-106). Segundo a autora foram "muito importantes as repercussões deste acontecimento que fugiu ao controlo dos próprios organizadores e que teve um eco muito grande na Igreja em geral e na portuguesa de um modo muito especial." 

Alguns dos temas abordados:

  • Condenação das práticas racistas e da discriminação racial e religiosa.
  • Defesa dos direitos das minorias, com menção concreta de solução justa para o problema dos refugiados da Palestina.
  • Prática de políticas realistas relativas à expansão demográfica.
  • Importância dos meios de comunicação social e seu compromisso com os oprimidos e desfavorecidos.
  • Plena igualdade de direitos do homem e da mulher na Igreja, e estudo do acesso das mulheres às ordens sacramentais.
  • Pedido no sentido de a doutrinação da Igreja sobre regulação da natalidade reconhecer aos pais a responsabilidade pela escolha dos métodos técnicos adequados.
  • Participação de leigos na eleição dos Bispos.

O texto de Joana Lopes pode ser lido aqui e as resoluções do congresso aqui.

Todas as faculdades anímicas e espirituais

"Dificilmente cria discípulos e faz escola quem não exprime com o fogo de uma permanente descoberta, quem não aceita a todo o instante o risco de errar, entregando-se à hipótese filosófica não apenas como inteligência lúcida mas sobretudo com a tensão expectante de todas as faculdades anímicas e espirituais."


António Quadros
"A Cultura Portuguesa perante o Existencialismo"
em Sartre e o Existencialismo de Ismael Quiles
(Arcádia, 1959)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Completam-se hoje 25 anos desde a sua morte.

João Gaspar Simões
Escritor, ensaísta, crítico literário, jornalista e tradutor, João Gaspar Simões nasceu na Figueira da Foz em 1903 e morreu em Lisboa a Janeiro de 1987. Dedicou grande parte da sua actividade literária ao estudo e à divulgação da obra de Fernando Pessoa, Antero de Quental, Camilo Pessanha e Eça de Queiroz. Foi um dos fundadores da revista Presença (1927-1940), escreveu nos jornais Diário de Lisboa, Diário Popular, Primeiro de Janeiro e Diário de Notícias, entre outros, e foi, para além de dramaturgo, tradutor de Balzac, Jean Cocteau, Dostoievski, Gogol, Aldous Huxley, Joyce, Kafka, D. H. Lawrence, Thomas Mann, Tchekov, Tolstoi, entre muitos outros.

Esteve com António Quadros em várias ocasiões, nomeadamente no Brasil, em Novembro de 1985, por ocasião de um círculo de conferências sobre Fernando Pessoa na Universidade de Brasília.

A Clepsidra de António Quadros


"Nem sempre se tem feito a merecida justiça a António Quadros, a sua obra fala por si: poeta, ficcionista, pensador, crítico, professor, António Quadros é um intelectual probo e honesto, da estirpe dos grandes intelectuais que se superioriza a todas as pressas e superficialidades de certa mediocridade impante que aí anda a dar-se ares nos «boulevards» citadinos. (...)"

Marques Gastão
 9 de Junho de 1988 de O Dia, a propósito da publicação das Obras de Camilo Pessanha
(Publicações Europa-América) organizadas e anotadas por António Quadros.

António Quadros e a Literatura Portuguesa na China

Em 1988, a Fundação Calouste Gulbenkian, no âmbito de um acordo com o Instituto de Literatura Estrangeira da Academia de Ciências Sociais da China, iniciou a publicação de várias obras de autores portugueses em chinês.
António Quadros foi o coordenador desse projecto em colaboração com Chen Guanfu. As primeiras obras publicadas foram: Os Lusíadas, de Luís de Camões; O Bobo, de Alexandre Herculano; Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; A Paixão de Maria do Céu, de Carlos Malheiro Dias; e A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Os tradutores, alguns dos quais bolseiros da Gulbenkian em Portugal, foram: Wang Quan-Li, Xuo Duo, Cheng Fangwu, Lin Yn-An, Zhaang Weimin e Fan Weixin.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O mundo, o mesmo e outro

"Articulou uma palavra, escutou um eco interior, teve um sobressalto, um momento de temor, logo uma esperança ou a suspeita de uma esperança, apontando ao futuro sem fronteira e sem morte. Levantou-se, saiu de novo para a praça. O sol queimava. Começou a andar vagarosamente para o hotel. Quase sem transição, sentiu a alegria de estar vivo, e de poder viajar, e de poder regressar. Mas não seria propriamente um regresso, porque nunca se regressa. Tudo era velho e tudo era novo. Tudo era conhecido e tudo era desconhecido. O mundo, o mesmo e outro, era agora uma apaixonante proposta de aventura. (...)"


António Quadros
"A Aventura", 
em Histórias do Tempo de Deus (1965)

Eterno presente sem idade

"Viajar é despertar cada minuto para a curiosidade do minuto seguinte. Posse do espaço e anulação do tempo. Nunca nos relaxamos, nunca nos abandonamos. Levamos o nosso corpo e o nosso pensamento à prova de mil reagentes desconhecidos. Vibrantes, os elementos passam em nós ao estado de turbilhão. Ressurge o entusiasmo juvenil de inesperadas sensações estéticas ou de inéditos amores. Quando a paisagem se imobiliza à nossa volta, precipitamo-nos vertiginosamente para o fim do movimento. Mas se a paisagem começa a correr diante de nós, atrás de nós, através de nós, porventura nos ficaremos num eterno presente sem idade, dominando o tempo e o travo da solidão. (...)"


António Quadros
"A Aventura", 
em Histórias do Tempo de Deus (1965)

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Compreendem agora, a sagrada disposição, a suprema relatividade?


"(...) Compreendem, agora porque começo enfim a sentir-me livre? Porque antes os meus passos me afastavam, em vez de me aproximar, porque antes as minhas acções regressavam sempre a mim, ao meu 'eu', à minha pessoa, anquilosando-me num círculo que tomara a própria estrutura do real, porque me compreendo enfim como um movimento menor, como uma fuga dentro da grande fuga, como uma partícula, dentro do grande verbo. Estamos todos comprometidos na mesma aventura, caminhamos todos para o mesmo fim, vamos todos irmanado na mesma condição, mas nada poderemos fazer uns pelos outros ou até por nós próprios, se não conhecermos a verdadeira natureza dessa aventura, desse fim, dessa condição. Subtilizando a nossa inteligência, sim, furtando o peso aos nossos hábitos, insuflando às nossas ideias a saudade ou simplesmente o desejo de levitação que nos toca nos momentos mais inefáveis, mas que é semente a cultivar nas nossas almas, descobrimos, vamos descobrindo, descobriremos o verbo para lá do humano, o verbo na raiz da contemplação, no centro da acção,  no núcleo mais irredutível do movimento, no perceptível, no audível, para lá do audível, no genético, no criador, no misterioso vital, no divino que habita a natureza, que espiritualiza a alma, que encarna no ser, que ama, que nos ama, que nos ama no amor, que promete o transcender das cisões, das diferenças, das oposições, dos antagonismo, dos egoísmos, dos círculos fechados, quando tomarmos a sagrada disposição de sermos também amor, e de levar os nossos pensamento, os nossos sentimentos, os nossos actos, à suprema relatividade que é também, o supremo dinamismo e o supremo conhecimento...
(...)

Ficaram todos calados durante alguns minutos. (...)

Paulo saiu, fechou a porta, desceu as escadas. Amanhã? Cristina deixou-se ficar encostada à porta, dizendo em voz baixa, descontroladamente: 
- Não, não, não. (...)"

António Quadros
"No tempo, revelando o tempo", 
em Histórias do Tempo de Deus (1979)