quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O gato e o corão

"Recebi do Mário Rui, o islamita, uma preciosa oferta, o Corão em Árabe, com dourados, um livro muito belo que, infelizmente não posso ler. 
Em casa, estive a folheá-lo com a minha mulher e pu-lo por fim sobre o tampo da camilha, à volta da qual estávamos sentados. O nosso gato saltou para cima da camilha, subiu para cima do livro, com as quatro patas nos seus quatro ângulos e estendeu-se deixando levantada a parte de trás como quem se espreguiça, desenhando exactamente a figura da prosternação, que é nos muçulmanos o terceiro momento da prece. E coisa ainda mais espantosa e assombro dos assombros, ficou nessa postura imóvel dutante quinze minutos. Estava voltado para Meca. 
Contei ao Mário Rui, mas, sem dizer uma palavra, despediu-se de mim com um aceno de cabeça. O que ficou pensando?"

Congeminações de um Neopitagórico (2006-2009)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Por conseguinte

"Admitindo, porém, que o corpo seja totalmente divisível, suponhamo-lo dividido. O que poderá restar? Uma grandeza? Tal não será possível, pois haveria algo que não teria sido dividido, e admitimos que o corpo era totalmente divisível. No entanto, se não restasse corpo nem grandeza e houvesse divisão, ou o corpo seria constituído por pontos, sendo desprovidas de grandeza as coisas de que fosse composto, ou nada seria em absoluto, — pelo que, neste caso, o corpo de nada seria proveniente e de nada seria composto, e o seu todo nada mais seria do que aparência. (...) Por conseguinte, se se supuser que qualquer corpo, qualquer que seja o seu tamanho, é totalmente divisível, serão estas as consequências. (...)"

Aristóteles
Sobre a geração e a corrupção (2009)
Centro de Filosofia da UL | Imprensa Nacional-Casa da Moeda

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Ensaio para uma teoria do Brasil

"Não me parece que no futuro cultural do Brasil a filosofia, tal como a entendemos até hoje, venha a ter uma grande importância, possivelmente porque há uma íntima contradição entre os seus objetivos e os seus métodos; de fato não se pode fazer filosofia como tanta vez se tem tentado, com o resultado de se produzir apenas literatura e da pior, sem métodos rigorosamente discursivos, em que sempre intervém como peça fundamental a distinta existência dum sujeito e dum objeto; mas a meta última de um verdadeiro impulso filosófico, como doutrina de compreensão ou doutrina de salvação, é a de se atingir um estado em que se apresente uma última realidade não dicotômica na qual nos incluamos, ou ela nos inclui a nós; por outras palavras, procuramos um sujeito ou pelo menos um ser em que se fundam sujeito e objeto, o que significa que há um ponto além do qual é impossível avançar em filosofia por métodos filosóficos; e aqui aponta, por um lado, o misticismo, por outro a filosofia apenas vivida, não sistematizada, que tem sido característica da nossa gente comum. (...)"

Agostinho da Silva
Espiral, Ano III, n.os 11-12, Lisboa, 1966

A multidão dos fracos é cada vez de tentação maior

"O que, porém, sucede, é que se entretêm demais os artistas, e nada julgam ser se o não fizerem, com filosofias que apenas têm como origem o não se saber, o não se pensar e o não se querer; esteticismos de sobremesa substituem o rancho de trabalhar e produzir; nas conversas de sociedade de bom tom se diluem os caracteres que só o silêncio e o isolamento poderia dignamente martelar; toma-se o tranquilizante para afastar angústia que tão bem-vinda seria como sinal de Deus; bebe-se porque se está triste, não para celebrar a alegria; ninguém mais sabe estar de pé ou andar a pé: cadeira e automóvel se redesenham, se aperfeiçoam; e a multidão dos fracos é cada vez de tentação maior para o domínio dos ousados sem escrúpulo (...)"

Agostinho da Silva
Espiral, Ano I, n.os 4/5, Lisboa: 
Tipografia Peres, 1964-1965, p. 24-36

O Brasil como se projeta

"O Brasil não poderá nunca ser o guia e o instaurador de uma cultura de verdadeira convivência, entre os homens e dos homens com o mundo, de verdadeira liberdade, que não é apenas a liberdade política, mas igualmente a liberdade econômica, a liberdade de agir como ser físico independentemente das reais ou supostas fatalidades do universo, e de liberdade de criação poética, quer essa poesia seja a de uma interjeição lírica, ou a de uma equação ou a de um motor melhor que Diesel, sem que entenda que isso é conhecer como se formou, a partir das três grandes correntes do índio, do português, do africano, como age no seu presente, depois de ter assimilado tanto outro grupo imigratório e de se ter posto em contacto com tantos outros povos do mundo, e sobretudo como se pensa, ou fantasia, ou se projeta para seu futuro, quanto aos indivíduos que o compõem, quer sejam os de um São Paulo, técnico e metropolitano, quer os de um Nordeste que só agora começa libertando-se de ser uma colônia do referido São Paulo. Se é que São Paulo não vai tentar que continue seu regime colonial por meio de um neocapitalismo disfarçado em nacionalismo econômico. (...)"

Agostinho da Silva
Cadernos de Estudos Brasileiros, Goiânia: 
Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás, 
nº 1, outubro de 1963, p. 29-34

O brasil que os estrangeiros não conhecem

"No entanto, basta que o observador, pondo de lado os livros das bibliotecas eruditas, e os quadros dos museus ou exposições eruditas, e as reuniões dos homens eruditos, que com tanta frequência se exportam ao estrangeiro, viaje pelo interior de Rio Grande ou Minas ou atravesse os sertões do Nordeste e se demore com alguma atenção no estudo daquela gente que um dia alimentou o Brasil, ou lhe deu as primeiras bases daquele barroco que é apenas um dos aspectos de um maior barroco atlântico tão demorado em surgir, ou afirmou em Canudos, morrendo, o seu direito a originalidade, basta o conhecimento embora ligeiro daquele Brasil que se recusa a julgar seu destino, esperar no cais o último e louco ditame de além-mar, para entender como está inteiramente errado o Brasil que os estrangeiros conhecem e, por outro lado, para perceber como assenta em bases inteiramente brasileiras uma literatura como a de Mário de Andrade ou uma arquitectura que, no melhor, já vai unindo a abstracção e o barroco. (...)"

Agostinho da Silva
57, Lisboa, n.º 5, setembro de 1958

Os meus actos

"É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos são guiados por mãos desaparecidas e a minha convivência é com fantasmas. (...)"

Raul Brandão
Os pescadores (1923)

domingo, 18 de janeiro de 2015

Aos burgueses civilizados

"O homem medíocre caracteriza-se pelo medo constante do imprevisível e daí, no ilustrado analfabeto que é o burguês civilizado, a inabalável confiança na Ciência, que admira e à qual está intimamente agradecido porque lhe permite ter automóvel, televisão e frigorífico, mas sobretudo porque funciona para ele como a grande redutora do mistério que o perturba e inquieta. Nada há, para ele, que a Ciência não possa e saiba explicar. Deus será uma vaga ideia remota de que falam livros que nos vêm da época da ignorância humana e as religiões, tão antigas como a treva em que vivemos, como as lendas e a crendice popular. Pelo sim pelo não, alguns vão à missa, porque na Igreja está um Deus socializado, em relação ao qual a religião estabeleceu formas inócuas de convivência, que porventura lhes garantam a comodidade e o bem-estar na outra vida, se for caso dessa vida existir.
A Ciência é assim com inicial maiúscula o órgão de conhecimento da burguesia. Mas, se Deus puder vir a ser contado, pesado e medido, só então se torna indubitável para ela a sua existência. De vez em quando, porém, nasce um extravagante genial, que traz a inquietação que se julgara ter expurgado de uma vez para sempre, e que de novo acorda os outros homens para o sentido do mistério. Um Fernando Pessoa ou um Álvaro Ribeiro não se podem ignorar como ninguém pode ignorar Shakespeare, porque souberam escrever as palavras que fazem ver. Como neutralizá-los? Há dois processos: um é o de lhes calar o nome, como se eles não tivessem existido, mas como, mais tarde ou mais cedo, isso se torna impossível de manter, recorrem ao outro processo que é o de tomá-los como objectos da Ciência, estudando-os como se de plantas ou de animais se tratassem ou, quando muito, de fenómenos psicológicos ou parapsicológicos."

 António Telmo 
(inédito aqui)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A ideologia da avaliação

"A ideologia da avaliação quer sempre incutir a falsa consciência, como todas as ideologias, de que é neutra e objectiva, e não subjectiva e produto de uma vontade particular. (...)"

António Guerreiro
Jornal Público, 16 de Janeiro de 2015

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A vila é a vida que é o simulacro

“A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro. (...)"

Raul Brandão
Húmus (1917)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Portugal e Brasil

"A dimensão universal dos países ou das comunidades não se mede em termos de quantidade. Não são criadores de civilização, não são arautos do futuro, não são agentes do movimento histórico, que amplia e enriquece a humanidade, os países ou as comunidades por terem milhares de quilómetros quadrados, centenas de milhões de habitantes ou um grandioso potencial económico ou bélico. Todas as nações são mátrias a um nível, mas só quando reconhecem e assumem a pátria ou o espírito dinâmico a que realmente pertencem, são capazes de virar o curso da história (...).
É nossa convicção que Portugal e Brasil de hoje, politicamente independentes e autónomos no plano da mátria ou da nação, todavia se unem na vinculação a uma pátria transcendente, representada em primeiro lugar pela língua comum, veículo de um espírito irradiante, expansivo e exigente do dinamismo que lhe estamos a negar, por desacerto filosófico. Que pátria é esta? A nossa pátria é a língua portuguesa. Não é Portugal e não é o Brasil. É infinitamente mais antiga, mais profunda, mais promissora e mais futurante. Falta-lhe um nome, que não ousaremos propor. Pátria paraclética, pátria espiritual, pátria movente, pátria todavia encoberta e em transe de revelação no drama e na epopeia da nossa história. António Vieira, um luso-brasileiro, chamou-lhe Quinto Império. (...)"

António Quadros
Seminário de Literatura e Filosofia Portuguesa
 1988, Friburgo, Suíça

Quem lhe mandou ser infinito?

«De porta em porta»
Alexandre O'Neill

Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito
estar entre gente.

– Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô.

– Dinheiro? Isso não!
Já sei, pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho . . . 

– Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?

– Para ir ver a mãe?
Essa é muito forte!
Ele não tem mãe
e não é do Norte . . . 

– Vítima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?

Na luta

“Todo o espírito superior, na luta vencedora contra a materialização, ou se mata, como Antero de Quental, ou, como Frei Agostinho da Cruz, força a barreira tenebrosa e ajoelha, rezando, aos pés de Deus...” 

Teixeira de Pascoaes
Os poetas lusíadas, Assírio e Alvim, Lisboa, 1987, p. 115

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Grau de passagem


“Todos os artistas que fizeram o seu auto-retrato ao longo dos tempos não foi porque se achassem particularmente belos ou interessantes mas porque assim avaliavam o seu grau de passagem. Eu escrevo o meu nome. (...)” 
Ana Hatherly
A idade da escrita e outros poemas, Escrituras, 2005.

A face cansada da minha mãe


"O salão era excessivamente grande para mim, os cães ladravam para o agouro das trevas, eu estava só no mundo. De longe, da minha infância perdida, veio a ternura da memória, a face cansada de minha mãe, a luz suave de tudo para nunca mais. E uma saudade densa caiu-me, como um peso, na alma. E chorei longamente, um choro recolhido, só choro para mim. Chorei quanto pude, até que a noite foi minha irmã e eu fui irmão da noite, um diante do outro, calados e de mãos dadas. (…) Desde então, sentimo-nos mais sós. Solidão estranha e inquieta. Erguia-se como um muro da desconfiança mútua, do receio da derrota e humilhação, da avidez do triunfo. Pequena guerra infantil, sim. E no entanto, como me agride ainda a sua crueldade! Decerto porque o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. Porque a dor é o que se sente e nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. (...)." 

 Vergílio Ferreira
Manhã Submersa (1954)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

No jardim

"No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora. (...)"

Fernando Pessoa em carta a Mário de Sá-Carneiro
14-3-1916

Educar

"Em Portugal educar tem um sentido diferente; em Portugal educar significa burocratizar. Exemplo: Coimbra. (...)" 

 Almada Negreiros
Ultimatum Futurista (1917)

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Nem polémica nem academismo


"Pergunto: Se me propus a exprimir a minha estranheza pelo relativo silêncio e desinteresse à volta de dois livros notáveis, como poderia eu deixar de em larga medida ser polémico? Joel Serrão é que o poderia deixar de o ser perante o livro de Marinho. De modo nenhum quero dizer que o renunciasse a discuti-lo, ou a julgá-lo e apontar o que tivesse por suas deficiências. (...) Só quero dizer que a sua atitude poderia ter sido de esforço de compreensão. (...) O livro de José Marinho não lhe solucionou nenhum problema, nem lhe apontou nenhum caminho para a solução dos seus problemas. (...) Deixando, porém, este tom, sem desaproveitar inteiramente o sumo do que foi dito: Se a complexidade do homem é um facto; se, como reconhece Joel Serrão, por vários caminhos se poderia ir à procura da Índia (...) - pergunto: Não poderemos deixar de reduzir a mera ilusão duma maturidade antecipada o esforço do autêntico crítico para julgar as obras dum plano que até certo ponto transcenda o individual? (...)"

José Régio 
"Da literatura e da crítica, Nem polémica nem academismo" 
Mundo Literário, Semanário de Crítica e informação nº39, 1 de Fevereiro de 1947

Comedido, sergiano, discreto, morno


"Com risco de me tornar desagradável aos visados, exemplificarei com o seguinte caso: Sobre O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra [de José Marinho], publicou Joel Serrão, na «Seara Nova», um longo artigo. Joel Serrão é, sem dúvida, um nome já prestigioso entre os dos críticos mais recentemente revelados. Mas o que é, na realidade, o seu artigo sobre o livro de José Marinho? Uma declaração de oposição de atitudes: uma obra de polémica. Sobre um tão longo e meditado belo ensaio de crítica interpretativa, não quis ou não pode escrever Joel Serrão com a simpatia indispensável ao reconhecimento da qualidade da obra. Se me não atraiçoa a memória, o mais encomiástico adjectivo concedido por Joel Serrão ao livro de José Marinho - foi o comedido, sergiano, discreto, morno atributo de «relevante». (...)"

José Régio 
"Da literatura e da crítica, obras de qualidade"
Mundo Literário, Semanário de Crítica e informação
nº36, 11 de Janeiro de 1947

"Irracionalidade do Eterno Retorno" por Sant'Anna Dionísio


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Mundo Literário, Semanário de Crítica e informação, nº9, 6 de Julho de 1946

Jorge de Sena sobre "Procura da poesia" de Carlos Drummond de Andrade

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Mundo Literário, Semanário de Crítica e informação, nº3, 25 de Maio de 1946

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Dizem que não tenho idade para estar cansado

Poema Vesperal

Dizem que não tenho idade para estar cansado.
Digo que não tenho idade para estar cansado.
Mas eu estou irremediavelmente cansado...
Não sei se conheço ou não a Vida,
(Toda a gente diz que não, que é impossível...)
Contudo, estou cansado.

Representei
E cansei-me; e desatei a gritar tudo... toda a Verdade.
Febrilmente gritei, rasguei máscaras, cuspi máscaras...
Agora até disso estou cansado
E nem leio o meu Baudelaire... o Príncipe de Todos.

Experimentei "tomar alegria",
Ouvir danças bárbaras,
Ver danças bárbaras,
Grandes contorções modernas,
- Sabiam falso...

Mais tarde descobri morto aquele-menino-que-fui.
Chorei... tive saudades... ai!, puro menino saudável...

Cansei saudades e lágrimas também...

- Ainda procurei vibrar...
Vibrar!, vibrar!

Vibrou apenas minha carne
E até ficar axausta, também...

Estou muito cansado.

Só interessa ir para a cama
E dormir...

Dormir bem...

Cristovam Pavia  
Poesia  Dom Quixote, (2010), pp 67 - 68.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Para um e para o outro


"O filósofo escolhe as palavras pela sua tenacidade e, como prosador que é, com palavras vai futurando para o homem um mundo de libertação; o poeta escolhe as palavras pela sua beleza (...). Mas acima das palavras está, para um e para o outro, o domínio do pensamento.(...)

Álvaro Ribeiro
Escritores Doutrinados (1965) pp. 14-15