quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

«As coordenadas líricas» de Fernanda Botelho


Matrimónio

Disseram que sim ;
mais nada.

E depois
foram os dois
esgotar o romanesco
numa casa pintada
de fresco.

Fernanda Botelho
As coordenadas líricas, Edições Távola Redonda, (1951), p. 15

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Esquecimento real


"Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas, a um apelo de abandono, a um esquecimento «real», a bruma da distância levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas comovente... (...)"

Vergílio Ferreira
Manhã Submersa (1954) Portugália Editora, p.88

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Infelizmente vulnerável



"A principal dificuldade que se levanta no código deontológico da comunicação social é, digamos, a de uma plataforma de consenso que harmonize os diversos interesses e opções. Mas para que tal plataforma seja possível, e para que se alargue progressivamente, e para que não seja apenas uma «segunda realidade» institucional e jurídica, antes radicando na «primeira realidade» que é a consciência individual dos órgãos e dos agentes de comunicação, é necessária uma reflexão que se imponha pouco a pouco aos interesses obscuros ou às ambições ilegítimas que proliferam infelizmente neste meio entre todos vulnerável, porque excessivamente ambicionado pelo poder, pelo carreirismo, pela ideologia, pelo desejo de lucro ou fama. (...)".


António Quadros
"Algumas Reflexões sobre a Deontologia da Comunicação Social", 
Democracia e Liberdade, nº 23 (Abril/Maio, 1982), p.116

domingo, 12 de janeiro de 2014

Correio da Manhã, 31 de Dezembro de 1988


António Quadros e Manuel Alegre


Um céu assim mais lento



Ensoneto

Entretanto, meu filho, é vinho tinto,
erosão persistida, abraço baço.
Lumes novos, quem é que os inventa
melhor do que o calor que nós nos damos?

As uvas, pois. O mais é uma cadeira
e o olhar do céu com chuva ou não,
enquanto as aves fogem e nós as imitamos
quase sem dor nem arte - só sentidos.

Assim sossega, assim verdeja e está,
eructa e vê, olhando à transparência,
um céu assim mais lento.

Só depois te levantas, e contigo
vai certeza nenhuma, só viver
outra vez, amanhã, a vida mesma.

Pedro Tamen
antologia provisória, Limiar, (1983), p. 101

sábado, 11 de janeiro de 2014

Hoje que somos o futuro nebuloso


"A filosofia autêntica, aquela que nada recusa na sua infinita apetência de sabedoria, aquela que não despreza um sinal, por mais inaudível, aquela que não passa ao lado de um caminho, por mais perigoso, aquela que não desvia os olhos de uma possibilidade, por mais ingrata aos prestígios  da época, a filosofia autêntica reclama o direito de exceder o facto, a experiência, a razão, a ideia, o conceito, o próprio homem, cuja assunção física e metafísica permanece aquém da sua substancial realidade. (...) Mas compreende-se perfeitamente hoje, hoje que somos o futuro nebuloso em que os positivistas há cem anos confiavam, que determinados fenómenos não podem ser apreciados como factos, escapam a toda a tentativa de legislação e muito menos podem ser repetidos e desmontados por experiência de laboratório. A maioria das essenciais interrogações da filosofia, desde a origem da vida até ao fim da existência, não obtiveram da ciência positiva senão respostas que revertem de novo ao a priorismo metafísico e idealista e são defendidas ou impostas pelos seus adeptos por formas que têm quase todos os atributos da crença ou mesmo da fé. (...)"

António Quadros 
"O Ideal português na filosofia" 
em O que é o ideal português, Edições Tempo (1962) pp.27-28

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Cinquentenário da morte de Jean Cocteau


"A semana da partida, tão curta no fim de contas, parecia nunca mais acabar. Julgando aborrecer-se e salvar-se pela ideia da cantina, Guilherme preparava, entre as mulheres e ele, esse nó de ausência, que se reforça com o tempo e altera as perspectivas, pois vemos os que se afastam crescer desmedidamente na nossa imaginação. (...)"
Jean Cocteau 
Tomaz o Impostor, Edição Livros do Brasil
(1955) Tradução de António Quadros

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Há almas embrionárias


"Há almas embrionárias, velhos lojistas que olham para si próprios com terror. A maior parte da gente, nasce, morre sem ter olhado a vida cara a cara. Não se atrevem ou ignoram-na: a outra existência falsa acabou por os dominar. Não há mascara que não custe a arrancar, há mentiras que têm raízes mais fundas que a verdade. Por isso, para uns não morrer é continuar a jogar o gamão pela eternidade, para outros é juntar uma moeda a outra moeda, um dia a outro dia inútil. Sempre... Já na botica dois idiotas recomeçaram com escrúpulo uma partida que deve durar cem anos, e o bocal amarelo, as moscas mortas estão ali com outro ar. Fixaram-se. Estão ali embirrentas e sórdidas para toda a eternidade. Pouco e pouco o sonho dissolve, a nódoa d'oiro alastra. Vai mexer com o subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso há dois mil anos, sobressalta o instinto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma, volta a existência do avesso, deita o muro abaixo. Por ora é só uma ideia, mas sai-nos de cima o peso do mundo... Mexe em tudo, revolve todas as raízes que se apoderaram da vila. O sonho cai na regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos dentes afiados que se transformaram em sorrisos, na paciência de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia. Certas existências são formidáveis, outras existências são como alcovas onde nunca entrou a luz (cheiram a relento) e onde agora se agita e gesticula um ser desconhecido. Certas existências são feitas de ódio minúsculo, de inveja que sorri porque nem a inveja se atreve. Certas existências são crepusculares. Em certas existências são os mortos que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulcro. Quase toda esta gente se desconhece. Nunca se atreveram e agora perguntam-se: Sou eu? sou eu? Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. (...)"

Raul Brandão
Húmus (1921)

A existência é a essência


"Não é típica do existencialismo (...) a negação da essência, do absoluto, do que transcende a finitude e a multiplicidade do mundo quotidiano. Asseverando que a existência precede a essência ou até que a existência é a essência, quer o pensamento existencialista dar categoria metafísica às formas da vida opulenta e vária em que os humanos se inserem. Se um caminho se pode traçar do imanente para o transcendente, tal caminho desenvolve-se necessariamente a partir do existente como tal. Derivadamente lhes pareceu que, de entre todas as faculdades humanas, é o sentimento a que assinala uma relação mais natural, espontânea e imediata com o devir existencial. (...)"

António Quadros 
"A Cultura Portuguesa perante o Existencialismo" 
em Sartre e o Existencialismo de Ismael Quiles, Arcádia, (1959), p.20

Mais aqui.

Qualquer coisa



Que venha amor ou morte
Ou aniquilamento,
Que venha
E me acabe de vez
Com o próprio esquecimento!

Este contínuo esperar
Que o tempo venha e passe,
E o receio de quem nem sequer a morte mate...

Oh, que venha,
Qualquer coisa que não passe!

Um Ritmo Perdido (1958), p. 37

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014


"- Você não percebe nada de liberdade!
- Pois não, sou um escravo!
- Você é escravo de quê? de quem?
- Somos todos escravos uns dos outros ou de alguma coisa, ao mesmo tempo escravizamos sempre alguma coisa ou alguém. Esta é que é a base da liberdade: para que alguém suba, alguém tem de descer. É como se o espaço em cima ou em baixo fosse limitado ou tão matematicamente regulado que uma determinada deslocação num nível tivesse de produzir inevitavelmente uma deslocação compensadora. Deve ser para manter as forças a um nível desejável.
- Quais forças?
- As forças da destruição. (...)"
Editora Arcádia (1963), p.124

«Democracia e Liberdade», n.º 53 (Dezembro de 2013)


Em 1987 António Quadros colaborou no número 42/43 da revista «Democracia e Liberdade», dedicada à «Filosofia Portuguesa». Parte desse texto pode ser lido aqui.


(re) lançamento ocorreu em Dezembro de 2013

António Quadros, Bruxelas, Junho de 1989

Com João Deus Pinheiro e o embaixador português em Bruxelas António Patrício
Estátua de Fernando Pessoa
Praça Eugène Flagey, Bruxelas, Bélgica

Parte do discurso de António Quadros pode ser lido aqui.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Casualidade eficiente

"A absolutização da causalidade eficiente conduz ao que se chama de historicidade, isto é, à ideia de que a história obedece a uma única norma, a norma de uma evolução biovital linear em que o consequente se explica sempre pelo antecedente. É verdadeiro que a historicidade caracteriza até certo ponto o homem, mas o amor ilimitado do saber obriga-nos a uma outra e mais essencial regra de jogo: examinar e pensar todos os elementos velados, escondidos, enignáticos que, surgindo embora na história, corporizados embora historicamente, parecem exceder contudo a casualidade eficiente (...)"

António Quadros
Introdução à Filosofia da História Editorial 
Verbo, 1982, p.197