"Não nos interessa neste momento saber se haverá redenção para tal queda e se algum dia se poderá voltar à Idade de Ouro, com o fim da guerra à natureza que tem sido a existência histórica da humanidade, com o fim da escravidão dos homens e da submissão de mulheres e de crianças; o que importa fixar agora, para que possamos compreender a essência do teatro, tal como ele se nos apresenta surgindo na Grécia, é que houve uma separação entre a natureza humana e o comportamento humano, que se trocou a espontaneidade pela regra, a alegria pelo sacrifício, a natureza pela sociedade; se não receássemos ir longe demais, diríamos que se trocou o instinto pela razão ordenadora; houve uma quebra entre os impulsos mais profundos e a necessária vida social; foi-se obrigado a
remar contra a corrente do rio e só em raras ocasiões pôde o homem voltar a esse profundo, íntimo, identificante contato com o mundo natural.
Uma dessas ocasiões era a festa das colheitas, sobretudo a da vindima; é o momento em que o homem tem ante si os frutos prontos ao consumo e em que se dá como que a renovação do milagre antigo de haver sempre à disposição de todos os alimentos necessários; tudo o que fora trabalho, disciplina, ciência e esforço organizado, tudo desaparecia e se esquecia diante da colheita que vinha garantir um ano mais de existência. E espontaneamente surgiam os cantos e as danças, os cortejos ruidosos; Dionísio, deus dos instintos e da natureza, quebrava a calma, a serenidade, e o racional saber de Apolo; com a fabricação do vinho, as festas foram um grau mais alto, porque a bebida lhes dava a facilidade de esquecerem, não a vida, mas a morte lenta e contínua em que andavam mergulhados; e era bebendo que eles reencontravam a vida verdadeira, a outra, a da alegria sem limites, a da irresponsável liberdade, a dos instintos sem grilhões. Com o vinho, porém, não só se estava usando para reentrar em contato com a natureza, dum meio não natural, o que era contraditório, como também, com o despertar da embriaguez, mais duramente se sentia a estreiteza do mundo real, do mundo social, daquele em que se tinha de viver.
O conflito entre o apetite e o dever punha-se ainda duma forma mais aguda; o que era a festa de Dionísio, o que era reatar dos laços que se tinham quebrado, não se conseguia ver livre do domínio, da presença, da paradoxal sombra de Apolo. Na realidade, dadas as condições de vida que existiam, o homem nada mais conseguia fazer que não fosse um conflito perpétuo entre a força do instinto e a da inteligência previsora, entre a fusão completa com a natureza e a distinção entre um sujeito que pensa e um objeto que é pensado. (...)"
Agostinho da Silva
A Comédia Latina