quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O ser em si


"Tem ou não tem o sentimento saudoso um objecto? Se tem, qual é esse objecto? Serão os entes queridos, desaparecidos ou ausentes, a terra distante, o passado individual já vivido ou, através deles e neles, o próprio ser ou a plenitude do ser do homem ou no homem? (...) Pode a saudade ser metafisicamente concebida como sentimento de ser pleno e perfeito no ser imperfeito, como sentimento de privação de uma perfeição perdida ou devida? Se assim for, que relação pode estabelecer-se entre ela e a ideia de queda ou cisão? A esta última interrogação uma outra estreitamente se liga, a que inquire sobre as subtis relações entre a saudade e o mal, já que ambos parecem ter na queda  ou cisão a sua origem. (...) 
Tendo agora em conta o ser da própria saudade, parece apresentar ela um duplo sentido, que a variação semântica revela ou confirma, quando, tanto em português como em galego, ela nos surge como suídade (p.e., em D. Duarte), quer como siudade (na poesia de Rosalía de Castro) ou como soedade ou soídade (na poesia de Lamas Carvajal ou de Manoel António). 
Assim, por um lado, a saudade será solidão ou solitude, ensimesmamento e contemplação, representação ou evocação de um tempo passado, se bem que ensimesmamento dinâmico e projectivo, e, por outro, será o que é próprio do ser ou o ser em si.
Ainda no domínio propriamente ontológico, a três outras essenciais interrogações dá lugar a saudade. Reporta-se a primeira a saber se é legítimo afirmar que, na saudade, o ser se apresenta não apenas como ideia ou conceito mas como realidade, simultaneamente imanente (...) e transcendente.
Quanto à segunda, traduz-se ela em perguntar se, nascendo a saudade do amor e ausência e compondo-se de lembrança e de desejo ou esperança, implicará, ou não, consubstanciamente, um impulso religativo ou unitivo.
Por seu turno a terceira interrogação visa inquirir se e em que medida pode a filosofia da saudade proporcionar uma nova visão ou propor uma nova solução dos problemas do mesmo e do outro e do uno e do múltiplo. (...)"

António Braz Teixeira
A Filosofia da Saudade, Quidnovi (2006) pp.17-18

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