"O descobridor da psicanálise era um racionalista, que teve sempre o cuidado de substituir os termos por que tradicionalmente se designam os elementos e as forças da vida psíquica por palavras aceites no domínio científico. Se soubermos, conforme ele nos ensina sobretudo na sua «Interpretação dos Sonhos», desdobrar o que foi dobrado, extrairemos talvez dos seus livros muito mais do que uma explicação sexualista do homem, segundo o monismo antropológico que vulgarmente lhe é atribuído. Em termos aristotélicos, dir-se-ia que se a «libido» constitui a causa substancial, o conhecimento é a finalidade de que a palavra é o princípio formativo. Com efeito, o elemento filológico é fundamental em Freud. A palavra actua entre o inconsciente e o consciente, de tal modo que é pela atenção aos seus movimentos que se explicam os actos falhados, as nevroses, os sonhos, - enfim, toda a vida psíquica do homem e da mulher.
Pondere-se a importância de tudo isto. Em primeiro lugar, as línguas não serão, como se tem querido, instrumentos quase físicos, ou, pelo menos, tão relacionadas com certos mecanismos fisiológicos que se possam estudar, na sua natureza e evolução, dentro dos quadros fonéticos da filologia alemã; não serão, em segundo lugar, sistemas de expressão de ideias e de emoções, conforme querem os gramáticos e os estilistas de formação germânica; e estarão, por conseguinte, muito mais desligadas das funções cerebrais do que pensam quantos se agarram ainda a uma fisiologia ultrapassada. (...)
Com efeito, e conforme vimos, a acção de uma língua não se exerce apenas à superfície. É uma relação orgânica. E cabe perguntar, neste momento se um homem português sonha com um homem estrangeiro. A pergunta, por insólita, parece idiota. Nós, pelo contrário, achamo-la comparável àquela que o tribunal exlesiástico que julgou Joana d'Arc fez à Santa e que consistia em saber em que língua Deus se lhe tinha dirigido, quando ouviu as vozes interiores."
António Telmo, "Da Língua Portuguesa", Espiral nº4/5, p.58