"Veio o médico de serviço. Veio a irmã Eugénia, solícita, bondosa, passando-me a mão sobre a fronte. Vieram enfermeiros. Foi uma agitação ruidosa e insuportável. Conduziram-me de maca até à enfermaria. Deram-me não sei que pílulas, atarefaram-se em meu redor. Trouxeram-me de novo para o quarto e deitaram-me. Melhorei, um pouco pelo menos, e a dor fortíssima desapareceu, ficando só a mesma pressão sobre o peito. Sinto-me agoniado. Vou morrer? Vou morrer? [...] Pensar, lembrar, as duas dores confundem-se-me, a dor dos meus ideais abatidos (e todavia resistentes) e a dor desta opressão que me sufoca [...] Lembro-me do que me disseste, há muitos anos, na minha visita à Holanda quando exilado de Portugal. Ah! A hora primeira! Quando com assombro se descobre que não há margem para dúvidas! Quando se chega a de onde não se pode voltar! O que se encontra, meu Deus!
Foste arrepiantemente premunitório. O que se encontra? Um quarto de hospital, um cheiro a desinfectantes, a comiseração das pessoas que nos olham como se já não estivéssemos cá, as últimas despedidas, a visita de uma amiga querida mas logo saudosa, as más recordações, um olhar para trás e perceber que tudo passou velozmente e não aproveitámos o nosso tempo, um reviver os nossos erros e um menosprezar dos nossos possíveis acertos. Olhamos para dentro de nós e apercebemo-nos que fomos pouca coisa, de que somos pouca coisa. Escrevemos livros, sobretudo um livro, montámos toda uma teoria de respostas satisfatórias para as nossas mais fundas interrogações, julgámo-nos senhores de um saber superior ao da maioria dos nossos amigos ou contemporâneos, mas sempre a mesma pergunta contundente e inevitável. O que se encontra, meu Deus?"
António Quadros
Uma Frescura de Asas, Europress (1990) pp. 114-115
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