"Modestamente, venho-me dedicando há anos a estudos de zoologia. Sem pretender rivalizar com os grandes investigadores deste ramo científico, resolvo-me todavia hoje a publicar algumas notas, aliás seleccionadas de entre muito material acumulado e que um dia valerá a pena reunir e sistematizar para a posteridade.
Os ratos
Estes pequenos roedores são na realidade tímidos e vulneráveis. Escondem-se durante o dia, mas de noite (assustadiços como são) conseguem alimentar-se de sobejos e detritos, circulando nos forros das casas, nos canos de esgoto, nas lixeiras. Têm um instinto seguro. Quando a casa começa a arder, ei-los que fogem imediatamente em massa, antes de o perigo se tornar mortal. Escolhem então outra casa, outro lar. E de novo irão prosperar à sua maneira tímida e nojenta, em novos forros, em novos canos de esgoto, em novas lixeiras.
Os camaleões
São um fenómeno único de adaptação ao meio ambiente. Ante os riscos que a natureza e o mundo zoológico prodigam, não combatem nem fogem, mudam de cor. Quietos, adquirem por um prodígio inexplicável as tonalidades da vegetação com que procuram confundir-se. Pretos ou vermelhos, verdes ou azuis conforme convenha, qual a sua real identidade, qual a sua cor de origem? Impossível sabê-lo, o que neles é verdadeiro é a mentira das suas mudanças oportunas.
Os rinocerontes
Pesados, pré-históricos, olhos pequenos, investem a direito. São um anacronismo, um regresso ao tempo dos dinossauros. O seu galope assusta. Quem não é por mim é contra mim, parecem dizer.
Perante a investida, muitas das presumíveis vítimas preferem transformar-se, elas próprias, em rinocerontes, e juntar-se à manada pré-histórica. Foi o zoologista iminente Eugénio Ionesco quem pela primeira vez observou este fenómeno, a que chamou rinocerite e que é afinal uma versão activista da passiva camaleonite.
Os carneiros enraivecidos
Depois de abordar a problemática zoológica-transformista da rinocerite, o mestre Ionesco investigou o tema afim da carneirite. Interessou-se especialmente pelos carneiros enraivecidos, parecidos com os rinocerontes em fúria, se com menor majestade, certamente com maior capacidade gregária. Contudo, já se viu um rebanho inteiro de carneiros enraivecidos? Fica em aberto este grande problema. identificados por laços irracionais e emocionais, os carneiros enraivecidos tanto poderiam destruir tudo à sua frente, como precipitar-se de cabeça baixa no abismo. Por isso, mais tarde ou mais cedo há que rarificá-los e integrá-los com as ovelhas - vencê-los pelo número.
As ovelhas
Houve, há e haverá ovelhas. É inevitável a existência beatífica do rebanho de ovelhas, que dominam em geral a agressividade dos carneiros, até pela sua quantidade. Aquecendo-se umas contra as outras, descobrem instintivamente o êxtase da unidade, a que os mal intencionados chamam uniformidade. Bem enquadradas pelos cães de fila, que as conservam juntas, deixam-se conduzir docilmente seja para onde for, pacíficas e alvares; para o pasto, para a tosquia ou para o abate. Aliás, não importa para onde as conduzem. São uns seres cómodos e confiantes. A sua docilidade guiada, vigiada e igualizada é a sua felicidade e a sua segurança- O rebanho é que é o fim.
As aves de rapina
De garras aceradas, descem vertiginosamente das escarpas. Carnívoras, baixam sobre a ovelha incauta e contra elas é impotente o cão de guarda. Organizam-se batidas, mas há sempre inacessíveis ninhos de abutres ou de águias, desconhecidos dos caçadores zelosos. Aves de rapina desaparecem, mas outras continuam, para que não fique perturbado o equilíbrio ecológico.
Os chacais
As grandes feras da selva andam acompanhadas, à distância de bandos de chacais. As grandes feras morrem, outras as substituem, mas os chacais permanecem fiéis ao seu instinto de devoradores cobardes: seja qual for o rei da floresta, eles constituirão a guarda de vassalos aduladores, que dos seus restos se alimentam.
Os porcos
Na pocilga, engordam. Comer é o seu fito. Se o alimento falta, os seu grunhidos lancinantes atroarão o universo inteiro. Quem poderá então resistir a esse coral patético vindo das pocilgas?
Os crocodilos
Durante horas ou anos estiveram imóveis, apagados e anónimos, à espera da sua oportunidade. Súbito, ela chega: e o que parecia um tronco de árvore caído, é de repente uma boca hedionda toda feita de dentes aguçados, que apanha e dilacera o transeunte ingénuo ou distraído.
As formigas
Laboriosas e idênticas, trabalham todo o dia e todo o ano; laboriosas e idênticas, controem o formigueiro, onde repartem entre si o produto do seu incansável labor. A sociedade das formigas é a maravilha fatal da natureza. Complexada, a sociedade humana procura imitá-la, mas sem um verdadeiro êxito. Tanta desordem, no nosso mundo mal planificado, mal programado e mal igualizado. Quando é que os homens conseguirão finalmente expurgar a heresia da personalidade?
Os jovens lobos
Em alcateias, os lobinhos sanguinários (desobedecendo aos seus maiores) atacam quantos se lhe opõem. Matar e devorar o que ainda é vivo e lhes resiste é a sua filosofia barbárica e carnívora. O sangue ardente que lhes corre nas veias, só pode ser aplacado em grandes rituais obscuros de sacrifício. Oiçam-nos que uivam, antes de atacarem a manada de gordos ruminantes. Os velhos lobos recomendam-lhes prudência, moderação, inteligência. Se quiserem um dia ser formigas, têm de aprender a ser menos impulsivos.
Os cães
Há os cães de estimação e há os cães de circo. Há os cães domésticos, que fazem habilidades caseiras, e há os cães de guarda bem treinados, que obedecem cegamente às ordens dos pastores. Há os cães vadios, farejando, famélicos, os caixotes de lixo, e há os cães raivosos, que se vingam de o serem. Há os cães-polícia, prontos a saltar à garganta dos adversários ou dos invasores da propriedade, e há os mastins, babando-se em ódio, que são atiçados, tornados ferozes, lançados contra os homens. Mas a raça dos cães é sempre uma raça dependente e submissa. Guardando as ovelhas ou atirando-se às gargantas, o rosnar dos cães é a voz do seu dono.
Os burros
Espessos e obstinados que sejam, acabam sempre por ser montados. Têm longas orelhas ponteagudas, mas o mal é que não se vê com as orelhas. Ficam na sua, teimosos, porque nada entendem e nada sabem, a não ser de forragens e de pastos. Zurram como vivem: pequenamente, feiamente, estupidamente. Mas têm uma metafísica; a metafísica do coice.
Os papagaios
É na verdade curiosa a predisposição fonética dos papagaios. Basta ensinar-lhes uma palavra, uma palavra sonora, uma palavra fácil, uma palavra de passe, uma palavra de ordem, que eles aprenderão a dizê-la, e a repeti-la, e a voltar a repeti-la até à exaustão. Experimentem fazer a experiência com um grupo de papagaios. É um coro impressionante e convincente, pois dir-se-ia até que sabem o que vocejam ou gritam. Bem treinados, calculem, são capazes de dizer frases inteiras. Mas o seu pensamento rudimentar, nos seus cérebro minúsculos, é apenas fonético. É um eco mecânico, é um reflexo condicionado, é uma voz de papagaio."
António Quadros in A Arte de Continuar Português, Edições Templo, 1978, pp.139-144 (o texto, todavia, é de Maio de 1975)