sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Nota à margem

Neste mundo em ruínas, onde não se escuta absolutamente nada, a não ser o silêncio e o "trabalho persistente do caruncho que rói há séculos na madeira e nas almas" (Raul Brandão) com a internet, pelo meio, a mudar-nos o cérebro, é preciso procurar no passado quem nos apazigue o sofrimento e nos salve a alma.

Sabemos como a felicidade e a perfeição dos homens deixou de ser uma utopia, para se tornar num simulacro tão ou mais falso do que o mundo mais utópico que alguma vez a humanidade concebeu. Mas que importância podem os escritores, os artistas e os filósofos ter, se também eles, na sua grande maioria, participam na construção dessa visão, pela conivência com que vivem e pensam este mundo, ora recusando fundamentalistas e obtusos outras formas de se fazer cultura, ora desistindo e entregando-se sem reservas ou autonomia, a bem da fraternidade, a interesses próprios?

Existe no homem, desde há largos anos, a ideia de que a cultura não serve para nada. Em sentido amplo, ou, simplesmente, em sentido restrito, tudo, no que lhe diz respeito, é o mesmo. A cultura é desprezada, quando não absolutamente esquecida. Subsiste ainda entre nós, a sensação de que o mundo se divide em duas partes e, bem vistas as coisas, talvez seja verdade. O fosso está cada maior, mais fundo do que no passado.

Seria de esperar que o mundo das ideias e o outro, tão diferentes entre si, se encontrassem (como quem, depois de ultrapassar as suas fronteiras, encontra do outro lado um inimigo ou apenas algo ou alguém que não conhece) porém, acomodados pelo reconhecimento da mediocridade alheia e assustados pelo desconhecido à sua frente, desprezam-se e recusam, com os meios que têm ao seu alcance, por ignorância ou excesso de sabedoria, a existência do outro nas suas vidas.

Não se conhecem, não se vêem, não sabem que o outro é seu semelhante. E nós, tão indiferentes ao mundo como os outros, cúmplices como eles quanto ao resto, já não sentimos nenhuma estranheza ou vontade.
António Quadros Ferro

terça-feira, 26 de outubro de 2010

António Quadros sobre Delfim Santos

"[...] Delfim Santos é a nosso ver o protagonista de um diálogo fecundo, o diálogo do pensamento português com a filosofia alemã, do qual vieram a resultar uma crítica e uma fundamentação teóricas de grande qualidade, estimulantes em aspetos essenciais para a nossa cultura ou para a nossa criatividade filosóficas. É curioso observar que os primeiros escritos de Delfim Santos, era ainda estudante universitário e nos primeiros anos da sua formatura, isto é, entre 1929 e 1932, foram de natureza espiritualista e cristã, numa linha de pensamento protestante e evangélica, tendo sido publicados, quase todos, na revista portuense, ligada à Igreja Evangélica, intitulada precisamente Portugal Evangélico. Dadas as tradicionais relações da teologia reformada ou protestante com algumas facetas mais características do pensamento germânico, em geral voluntarista e imanentista, não é para admirar que ao contrário da tendência habitual da cultura portuguesa para privilegiar o diálogo com a cultura francesa, Delfim Santos antes tenha escolhido o estágio em centros de estudo predominantemente austríacos e alemães."

António Quadros - "Delfim Santos: Introdução ao pensamento filosófico e pedagógico", Lisboa: Leonardo, Ano 2, num. duplo, set. 1989, 22-29, 91. Artigo completo aqui.

sábado, 23 de outubro de 2010

sobre a liberdade

“[…] Ora só pode entender-se que uma sociedade é verdadeiramente livre ou em potência de liberdade quando os cidadãos atingirem um grau mínimo de autonomia individual, isto é, quando souberem conjugar o seu emprenho pessoal nos interesses superiores da polis com a capacidade de optarem por si próprios, compreendendo a todo o momento o que de fundamental está em jogo e estando aptos a resistir à pressão intelectual que sobres eles é exercida pelo poder ou pelos poderes, através das mil formas de sedução, de propaganda, de manipulação e de «formação», que visam usá-los, por vezes mais do que servi-los.
A liberdade de pensamento é pois a primeira das liberdades e precede-as. Mas a liberdade de pensamento não é um dado natural, é uma difícil conquista, é, digamos, uma iniciação, que parte da descoberta da nossa própria subjectividade e que se desenvolve, escreve Álvaro Ribeiro noutro livro, no trânsito do intelecto passivo para o intelecto activo ou da menoridade intelectual para a maioridade mental. A liberdade do pensamento implica uma iniciação, uma descoberta e também um movimento ineterrupto e de algum modo ascético para o saber.”

António Quadros
Memórias das Origens - Saudades do Futuro
 Publicações Europa-América, 1992, pág. 302
*via cadernos de filosofia extravagante

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Tendências dominantes da filosofia portuguesa no séc. XX

“ […] A questão da filosofia portuguesa, tal como se põe a partir da década de quarenta, encetada por Álvaro Ribeiro na sua obra O Problema da Filosofia Portuguesa, radica, pois, da revalorização dos chamados pensadores de transição […] Não devidamente valorizados no seu tempo, tiveram de esperar duas ou três décadas para serem lidos e considerados como o germe da questão que prioritariamente no ocupa, a questão da filosofia portuguesa. Com efeito, do movimento da reabilitação destes pensadores, da leitura atenta da evolução dos seus escritos, nasce a caracterização mais ou menos sistemática das tendências que presidem ao nosso genuíno modo de filosofar.”

Maria José Cantista, "Tendências dominantes da filosofia portuguesa no séc. XX : algumas achegas acerca da contribuição de José Marinho" in Revista da Faculdade de Letras, Univerdade do Porto, Série de Filosofia, nº 9, (2ª série) 1992, pp 73-101 Continue a ler aqui.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

«Ratos, Camaleões, Rinocerontes, etc. (pequeno estudo zoológico)»

"Modestamente, venho-me dedicando há anos a estudos de zoologia. Sem pretender rivalizar com os grandes investigadores deste ramo científico, resolvo-me todavia hoje a publicar algumas notas, aliás seleccionadas de entre muito material acumulado e que um dia valerá a pena reunir e sistematizar para a posteridade.


Os ratos
Estes pequenos roedores são na realidade tímidos e vulneráveis. Escondem-se durante o dia, mas de noite (assustadiços como são) conseguem alimentar-se de sobejos e detritos, circulando nos forros das casas, nos canos de esgoto, nas lixeiras. Têm um instinto seguro. Quando a casa começa a arder, ei-los que fogem imediatamente em massa, antes de o perigo se tornar mortal. Escolhem então outra casa, outro lar. E de novo irão prosperar à sua maneira tímida e nojenta, em novos forros, em novos canos de esgoto, em novas lixeiras.

Os camaleões
São um fenómeno único de adaptação ao meio ambiente. Ante os riscos que a natureza e o mundo zoológico prodigam, não combatem nem fogem, mudam de cor. Quietos, adquirem por um prodígio inexplicável as tonalidades da vegetação com que procuram confundir-se. Pretos ou vermelhos, verdes ou azuis conforme convenha, qual a sua real identidade, qual a sua cor de origem? Impossível sabê-lo, o que neles é verdadeiro é a mentira das suas mudanças oportunas.

Os rinocerontes
Pesados, pré-históricos, olhos pequenos, investem a direito. São um anacronismo, um regresso ao tempo dos dinossauros. O seu galope assusta. Quem não é por mim é contra mim, parecem dizer.
Perante a investida, muitas das presumíveis vítimas preferem transformar-se, elas próprias, em rinocerontes, e juntar-se à manada pré-histórica. Foi o zoologista iminente Eugénio Ionesco quem pela primeira vez observou este fenómeno, a que chamou rinocerite e que é afinal uma versão activista da passiva camaleonite.

Os carneiros enraivecidos
Depois de abordar a problemática zoológica-transformista da rinocerite, o mestre Ionesco investigou o tema afim da carneirite. Interessou-se especialmente pelos carneiros enraivecidos, parecidos com os rinocerontes em fúria, se com menor majestade, certamente com maior capacidade gregária. Contudo, já se viu um rebanho inteiro de carneiros enraivecidos? Fica em aberto este grande problema. identificados por laços irracionais e emocionais, os carneiros enraivecidos tanto poderiam destruir tudo à sua frente, como precipitar-se de cabeça baixa no abismo. Por isso, mais tarde ou mais cedo há que rarificá-los e integrá-los com as ovelhas - vencê-los pelo número.

As ovelhas
Houve, há e haverá ovelhas. É inevitável a existência beatífica do rebanho de ovelhas, que dominam em geral a agressividade dos carneiros, até pela sua quantidade. Aquecendo-se umas contra as outras, descobrem instintivamente o êxtase da unidade, a que os mal intencionados chamam uniformidade. Bem enquadradas pelos cães de fila, que as conservam juntas, deixam-se conduzir docilmente seja para onde for, pacíficas e alvares; para o pasto, para a tosquia ou para o abate. Aliás, não importa para onde as conduzem. São uns seres cómodos e confiantes. A sua docilidade guiada, vigiada e igualizada é a sua felicidade e a sua segurança- O rebanho é que é o fim.

As aves de rapina
De garras aceradas, descem vertiginosamente das escarpas. Carnívoras, baixam sobre a ovelha incauta e contra elas é impotente o cão de guarda. Organizam-se batidas, mas há sempre inacessíveis ninhos de abutres ou de águias, desconhecidos dos caçadores zelosos. Aves de rapina desaparecem, mas outras continuam, para que não fique perturbado o equilíbrio ecológico.

Os chacais
As grandes feras da selva andam acompanhadas, à distância de bandos de chacais. As grandes feras morrem, outras as substituem, mas os chacais permanecem fiéis ao seu instinto de devoradores cobardes: seja qual for o rei da floresta, eles constituirão a guarda de vassalos aduladores, que dos seus restos se alimentam.

Os porcos
Na pocilga, engordam. Comer é o seu fito. Se o alimento falta, os seu grunhidos lancinantes atroarão o universo inteiro. Quem poderá então resistir a esse coral patético vindo das pocilgas?

Os crocodilos
Durante horas ou anos estiveram imóveis, apagados e anónimos, à espera da sua oportunidade. Súbito, ela chega: e o que parecia um tronco de árvore caído, é de repente uma boca hedionda toda feita de dentes aguçados, que apanha e dilacera o transeunte ingénuo ou distraído.

As formigas
Laboriosas e idênticas, trabalham todo o dia e todo o ano; laboriosas e idênticas, controem o formigueiro, onde repartem entre si o produto do seu incansável labor. A sociedade das formigas é a maravilha fatal da natureza. Complexada, a sociedade humana procura imitá-la, mas sem um verdadeiro êxito. Tanta desordem, no nosso mundo mal planificado, mal programado e mal igualizado. Quando é que os homens conseguirão finalmente expurgar a heresia da personalidade?

Os jovens lobos
Em alcateias, os lobinhos sanguinários (desobedecendo aos seus maiores) atacam quantos se lhe opõem. Matar e devorar o que ainda é vivo e lhes resiste é a sua filosofia barbárica e carnívora. O sangue ardente que lhes corre nas veias, só pode ser aplacado em grandes rituais obscuros de sacrifício. Oiçam-nos que uivam, antes de atacarem a manada de gordos ruminantes. Os velhos lobos recomendam-lhes prudência, moderação, inteligência. Se quiserem um dia ser formigas, têm de aprender a ser menos impulsivos.

Os cães
Há os cães de estimação e há os cães de circo. Há os cães domésticos, que fazem habilidades caseiras, e há os cães de guarda bem treinados, que obedecem cegamente às ordens dos pastores. Há os cães vadios, farejando, famélicos, os caixotes de lixo, e há os cães raivosos, que se vingam de o serem. Há os cães-polícia, prontos a saltar à garganta dos adversários ou dos invasores da propriedade, e há os mastins, babando-se em ódio, que são atiçados, tornados ferozes, lançados contra os homens. Mas a raça dos cães é sempre uma raça dependente e submissa. Guardando as ovelhas ou atirando-se às gargantas, o rosnar dos cães é a voz do seu dono.

Os burros
Espessos e obstinados que sejam, acabam sempre por ser montados. Têm longas orelhas ponteagudas, mas o mal é que não se vê com as orelhas. Ficam na sua, teimosos, porque nada entendem e nada sabem, a não ser de forragens e de pastos. Zurram como vivem: pequenamente, feiamente, estupidamente. Mas têm uma metafísica; a metafísica do coice.

Os papagaios
É na verdade curiosa a predisposição fonética dos papagaios. Basta ensinar-lhes uma palavra, uma palavra sonora, uma palavra fácil, uma palavra de passe, uma palavra de ordem, que eles aprenderão a dizê-la, e a repeti-la, e a voltar a repeti-la até à exaustão. Experimentem fazer a experiência com um grupo de papagaios. É um coro impressionante e convincente, pois dir-se-ia até que sabem o que vocejam ou gritam. Bem treinados, calculem, são capazes de dizer frases inteiras. Mas o seu pensamento rudimentar, nos seus cérebro minúsculos, é apenas fonético. É um eco mecânico, é um reflexo condicionado, é uma voz de papagaio."

António Quadros in A Arte de Continuar Português, Edições Templo, 1978, pp.139-144 (o texto, todavia, é de Maio de 1975)

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

da Filosofia

"Nem a filomitia em si própria (o amor dos mitos), nem a filo-epistemia (o amor das ciências), nem sequer a filognosia em geral (o amor da gnose), nem a filopistia (o amor da crença ou da fé) e, muito menos a filotecnia (o amor das técnicas, hoje paixão que tende a anular os primeiros estádios para o saber), podem bastar-se a si próprias, aspirar um estatuto de independência. [...] A alternativa vitoriosa é a vigente: um agir intermédio de ideias feitas, um pensar por estereótipos, uma prática sem teoria, um estarmos fora de nós para não estar em parte alguma, apenas os passivos, dóceis, domesticados, seguidores de ideologias, de doutrinas, de normas ditadas de fora, que nos transformaram pouco a pouco, de povo criador de civilização que fomos, em povo mimético, compensando os seus complexos e recalques com o discurso provinciano da "opção europeia" extrapolada mimeticamente para lá das meras práticas do mercado."

António Quadros, "Álvaro Ribeiro, mestre da geração do 57", in Revista Leonardo (I, nº2) pp. 16-17

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Sartre e o existencialismo vistos por um filósofo católico (de Ismael Quiles e António Quadros)


Índice completo aqui.

Ismael Quiles Sanchez Pedralba, (1906 - 1993) foi um teólogo e filósofo espanhol fortemente influenciado por Martin Heidegger, Gabriel Marcel e Karl Jaspers. Escreveu, entre outras obras, La persona humana (1942), Aristóteles: vida, escritos, doctrina (1944), Filosofía del cristianismo (1944), Heidegger y el existencialismo de la angustia (1948), Sartre y el existencialismo del absurdo (1952), Más allá del existencialismo: filosofía in-sistencial (1958), Metafísica budista (1967), Filosofía y mística: yoga (1967), Filosofía y religión (1985).