"Um dia, quando tinha quatro ou cinco anos, entrou na cozinha. Apesar das minhas recomendações, a Maria do Porto estava completamente proibida de matar fosse o que fosse em casa. Mas teimosa como era, um dia comprou uma galinha viva e matou-a em cima da mesa da cozinha no momento exacto em que o António entrou. Quando viu a galinha a espernear e a mesa coberta de sangue, teve um choque tão grande que, aos gritos e desfeito em lágrimas, se agarrou às saias da Maria, dando-lhe murros nas pernas com as suas mãozinhas crispadas. Eu peguei nele ao colo, levei-o para o quarto e comecei a dizer coisas à toa, coisas sem sentido que não serviam para nada, pois, de facto, não sabia verdadeiramente como fazê-lo compreender e aceitar aquela atrocidade. A certa altura, como supremo argumento, disse-lhe que a galinha estava muito velha, muito doente e que mesmo as pessoas quando estão muito velhas e muito doentes têm de morrer. Ele então olhou-me com os seus grandes olhos azuis marejados de lágrimas: - Morte morrida, sim, morte matada, não!"
Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória, vol. I, pag. 279
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