"(...) Compreendem, agora porque começo enfim a sentir-me livre? Porque antes os meus passos me afastavam, em vez de me aproximar, porque antes as minhas acções regressavam sempre a mim, ao meu 'eu', à minha pessoa, anquilosando-me num círculo que tomara a própria estrutura do real, porque me compreendo enfim como um movimento menor, como uma fuga dentro da grande fuga, como uma partícula, dentro do grande verbo. Estamos todos comprometidos na mesma aventura, caminhamos todos para o mesmo fim, vamos todos irmanado na mesma condição, mas nada poderemos fazer uns pelos outros ou até por nós próprios, se não conhecermos a verdadeira natureza dessa aventura, desse fim, dessa condição. Subtilizando a nossa inteligência, sim, furtando o peso aos nossos hábitos, insuflando às nossas ideias a saudade ou simplesmente o desejo de levitação que nos toca nos momentos mais inefáveis, mas que é semente a cultivar nas nossas almas, descobrimos, vamos descobrindo, descobriremos o verbo para lá do humano, o verbo na raiz da contemplação, no centro da acção, no núcleo mais irredutível do movimento, no perceptível, no audível, para lá do audível, no genético, no criador, no misterioso vital, no divino que habita a natureza, que espiritualiza a alma, que encarna no ser, que ama, que nos ama, que nos ama no amor, que promete o transcender das cisões, das diferenças, das oposições, dos antagonismo, dos egoísmos, dos círculos fechados, quando tomarmos a sagrada disposição de sermos também amor, e de levar os nossos pensamento, os nossos sentimentos, os nossos actos, à suprema relatividade que é também, o supremo dinamismo e o supremo conhecimento...
(...)
Ficaram todos calados durante alguns minutos. (...)
Paulo saiu, fechou a porta, desceu as escadas. Amanhã? Cristina deixou-se ficar encostada à porta, dizendo em voz baixa, descontroladamente:
- Não, não, não. (...)"
António Quadros
"No tempo, revelando o tempo",
em Histórias do Tempo de Deus (1979)
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