quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Carta de António Quadros a António Telmo

"Vale de Óbidos, 27-02-1990

Meu caro António Telmo,

Escrevo-lhe de Vale de Óbidos (perto de Rio Maior), onde arranjámos uma casinha de campo, com um pomar, e onde esperamos tê-lo um dia, não muito distante, para conversarmos com calma à sombra de um grande limoeiro fronteiro à porta que da sala dá para o terreno arborizado em que ando a plantar um simulacro de jardim.
Tem a calma e o silêncio que pede este Outono da nossa vida. É uma paixão de Outono, para nós dois…
Recebi a sua carta e o seu livro. A sua carta melancólica, recordando os nossos amigos desaparecidos… O mundo faz-se e desfaz-se todos os dias e, para nós, mais se desfaz do que se faz. Ao contrário do Álvaro [Ribeiro], creio que a saudade é um sentimento positivo: por ela, eles não desapareceram por completo do nosso convívio; por ela, eles continuam a estimular-nos e a exigir de nós o possível e o impossível.
Que seria de nós, sem essa presença invisível dos mestres, aguilhões do nosso espírito, alimentando a nossa perpétua insatisfação? Por mim, continuo a conversar com eles, e se eles me dizem que fiz pouco, que quase nada fiz, então sou obrigado a continuar…Também os amigos da nossa idade, o Rui, o Francisco, o Morgado, o A. Coelho mantêm ou ajudam a manter o espírito do “57”. Eles acreditaram, trabalharam, não lhes podemos falhar, enquanto formos vivos.
(...)
Sei que você andou muito por baixo, e creia que pensei muito em si. Afinal de contas, mesmo pesando todas as diferenças, não seremos os dois, os mais afins de entre os discípulos de A. e M., da primeira geração? De certo, eu sou mais “ortodoxo” (talvez por falta de ousadia intelectual interior), decerto, você foi sempre mais fundo do que eu, em todas as vias por que enveredou. Você tem a capacidade de ir ao âmago dos problemas e de estabelecer sínteses fulgurantes, em palavras concisas. (...) Eu permaneço nos arredores, fascinado do lado de fora, sem contudo atravessar o umbral da porta. (...)
Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia, pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia de Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os nossos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnóstica.
Devo dizer-lhe também que o seu livro me deslumbrou. Decerto, já conhecia muitos dos capítulos. Agora reunidos, contudo, surgem em coerência, como um todo poderoso e unívoco, como uma viagem do seu espírito para um Monte Abiegno que você já atingiu, com o preço do seu isolamento, aí em Estremoz, e de renúncia às ambições, às glórias e aos interesses efémeros deste mundo.
Quando você escreve em Gnose:

Não sei como tentar, e se sei, temo
O fulgor essencial que mata ou cega,

fico a pensar que, ao dizer se sei, admite o quanto avançou já na via gnóstica. Teme o fulgor esssencial: será mesmo que mata ou cega (duas proposições, aliás, diferentes)? Leonardo, Marinho, não o terão experimentado, sem por tal terem morrido ou cegado? Fulgor da visão unívoca, de saudade, de graça, porventura do êxtase a que acedem certos místicos, como a Dalila… (...) Ando a pensar em escrever um terceiro livro de contos, que se intitularia Mistérios. Já comecei mesmo a escrevê-lo, mas como o meu espírito anda demasiado errante, o querer fazer muitas coisas ao mesmo tempo porque a clepsidra se nos vai esvaziando a olhos vistos (...) estou parado a meio da primeira história...*
Contudo, segui-o apesar disso durante grande parte do caminho: o bastante para lhe poder dizer agora que vocês é dos poucos, de entre os discípulos, que deixará uma obra consistente e com páginas fulgurantes e inesquecíveis. (...)

Não deixe de me responder.
Um abraço do seu dedicado
António Quadros"

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*António Quadros não chegaria a publicar mais nenhum livro de contos, ainda assim, daria à estampa mais três obras: Memórias das Origens. Saudades do Futuro; Estruturas simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa; Trovas para o Menino Imperador do Espírito Santo.

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